Uma rádio cáustica sintonizada na Palestina de hoje

Radio No Frequency, no Teatro São Luiz, sábado e domingo, é uma emissão de rádio ao vivo de humor satírico. Em palco, integrado no Alkantara, um programa focado na invisibilidade mediática da vida na Palestina.

Concerto, Cantor e compositor, Músico
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A carreira internacional de palco de Radio No Frequency ainda não é longa. Mas estende-se já o suficiente para que Zina Zarour se tenha apercebido de que, em algumas cidades, o programa radiofónico satírico que iniciou em 2015 e se transformou num espectáculo teatral deixa algum público na dúvida. Aos poucos, o grupo responsável pela emissão foi percebendo que, aqui e ali, há quem tenha medo de rir. “Dá para ouvir a tensão quando se riem”, diz Zina Zarour ao Ípsilon. “Querem rir mas acham desadequado rir de certas coisas.”

Talvez porque a forma desabrida com que Zina Zarour, Henna al-Hajj Hasan e Lama Rabah usam o humor em relação aos refugiados e à situação social e política na Palestina causa um desconforto que se fricciona constantemente na culpa: a culpa por deixar que pessoas se vejam obrigadas a viver daquela forma; a culpa de o público, maioritariamente branco e privilegiado na Europa, levar uma vida a salvo de semelhantes experiências de humilhação e precariedade; a culpa de ter de se confrontar com os seus próprios preconceitos – individuais e colectivos.

Essa culpa é instalada logo no arranque de Radio No Frequency, com a subtileza de uma frase que pende sobre a plateia. Ainda estamos na introdução quando Zina, Henna e Lama nos lembram de que, finalizado o espectáculo, seguimos por caminhos separados. Para que não haja equívocos: por muito que o público do festival Alkantara e do Teatro São Luiz, em Lisboa, partilhe este sábado e este domingo uma hora e pouco das suas vidas com estas três palestinianas e os músicos que as acompanham, os seus destinos separam-se abruptamente logo em seguida. E todas as questões que são abordadas com um humor às vezes negro, outras vezes cáustico, outras ainda simplesmente incrédulo (mas sempre crítico), todas essas questões continuarão presentes no regresso de Zina, Henna e Lama para as suas vidas na Palestina.

Dona Taraddod, o título original, é um jogo de palavras, explica-nos Zina Zarour, que em árabe significa tanto “sem frequência como também sem hesitação”. É importante sabê-lo porque Radio No Frequency começou por ser um podcast que as três palestinianas criaram depois de terminarem um curso de jornalismo e concluírem que precisavam de inventar a sua própria plataforma para falarem abertamente de “temas políticos, sociais e económicos”. Os media tradicionais e mainstream não lhe ofereciam a possibilidade de fazer escutar a sua voz e não demorou a tornar-se óbvio que, se queriam falar para a sua geração acerca dos grandes temas quotidianos do seu território, teriam de encontrar outros canais. A abordagem destas temáticas através de um humor negro e sarcástico tornou-se tão popular que começaram, aos poucos, a testar sair da toca e realizar emissões ao vivo e em público, num par de locais de Ramallah.

A cada emissão, o formato ia crescendo, incorporando a música trabalhada por Faris Shomali e adquiria uma qualidade de espectáculo que, graças aos convites para se apresentarem fora da Palestina, se foi transformando e passando a integrar um outro tipo de discurso acerca da invisibilidade da situação palestiniana no cenário mediático internacional – “fomos esquecidos e abandonados”, dizem em palco, queixando-se da intensa competição que enfrentam dos refugiados sírios, iraquianos, líbios ou sudaneses. O espectáculo é, por isso, uma entidade viva, sempre a incorporar novos contributos, adaptações de textos, olhares que podem vir também dos músicos belgas com quem se apresentaram em Ghent e que, neste momento, passaram a integrar a digressão por outros pontos da Europa – como é o caso de Lisboa. Na Europa, precisamente, a adaptação passa a incluir considerações sobre as trincheiras de preconceitos atrás das quais os autóctones se barricam para tentarem preservar a sua segurança e salvaguardar a sua identidade.

E que se fazem anunciar, nesta emissão de rádio, através das cinco recomendações que um site oficial alemão faz a todos os refugiados que pretendem asilo e estejam dispostos a adoptar as regras básicas de convivência locais: aceitarem a homossexualidade e a diferença, inibirem-se de bater nas mulheres ou nas crianças, ou absterem-se de regatear preços no supermercado. Em meia dezena de mandamentos, uma colecção de lugares-comuns acerca do outro – o outro refugiado, o outro árabe, o outro palestiniano. “Acho que é importante as pessoas ouvirem quão absurdo isto soa”, diz-nos Zina. Da mesma forma que soa absurdo aos seus ouvidos e aos de muitos a quem isto é pedido.

Uma autorização a cada 1 minuto e 19 segundos

Radio No Frequency tem pouco mais de uma hora de duração. Mas para poder montar cada apresentação em espaço europeu a equipa tem de obter a autorização de 29 governos diferentes: Autoridade Palestiniana, Israel, Jordânia e os 26 países abrangidos pelo acordo Schengen. Em média, dizem, precisam de autorização de um estado por cada um minuto e 19 segundos do espectáculo. E na ausência de um aeroporto em território palestiniano, há todo um moroso percurso até Amã, na Jordânia, passando diversos checkpoints para conseguir finalmente um voo de ligação que dê acesso a qualquer destino europeu.

Este, como qualquer outro assunto que se prenda com as contrariedades vividas no dia-a-dia na Palestina, é filtrado por um humor que é arma de defesa, sobretudo a nível interno, mas que não aligeira – nem um pouco – o peso dos temas em questão. “Na Palestina até nos é permitido usar mais o humor porque as pessoas percebem mesmo aquilo de que estamos a falar”, explica Zina Zarour. “Usar o humor ajuda-nos a falar destes temas tantas vezes tristes e trágicos, possibilita-nos chegar às pessoas. E na Palestina todos aprenderam a ter sentido de humor, mesmo sobre tudo aquilo que é mais duro e cruel nas nossas vidas.” Não há mesmo, aliás, grandes interditos. O grupo força os limites em cada nova emissão, ao mesmo tempo que incorpora elementos colhidos na realidade como a abertura da embaixada norte-americana em Jerusalém por decisão de Donald Trump.

Cada gargalhada, no entanto, mascara sempre o curso trágico de uma população expulsa, em 1948, do território que hoje os mapas identificam como Israel. Cada risada é, por isso, uma forma de evitar o choro. Porque segundo Zina, que vinca o facto de haver uma recusa destes artistas em cooperar seja de que forma com instituições ou entidades israelitas – “Para nós Israel não existe, é um estado colonial”, acusa –, Radio No Frequency existe apenas para confirmar a luta pelo regresso de todos aqueles que foram forçados ao exílio e retirados das suas casas, sem direito a regressar. A falta de sintonia do rádio é, antes de mais, essa. A emissão nunca parou. Mas talvez tenha deixado de se ouvir.

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