Neste debate tocou uma sirene

O debate sobre a eutanásia dividiu-nos e vai dividir-nos sempre — até mesmo interiormente. O que nos une agora é essa estrita obrigação de cuidar melhor uns dos outros, também à beira da morte.

Talvez tenha sido a política: não fora o cruzamento de votos na bancada do PSD e é possível que tivéssemos a caminho uma lei para despenalizar a eutanásia. A dúvida fica porque nos últimos dias houve um movimento interno que quis contestar Rui Rio e a sua posição pró-despenalização. E acentua-se porque é difícil perceber como é que, em consciência, um deputado pode votar a favor de um diploma e contra todos os outros — quando todos eles eram tão parecidos. 

Isso aconteceu, mas não é o mais relevante sobre o debate que vimos e vivemos. Porque nele houve também liberdade e convicção, houve debate e democracia. Mais importante ainda: porque o debate resultou na consciencialização de que temos um problema sério — e cada vez mais visível — na forma como cuidamos dos que estão à beira da morte. Dito de outra forma: de como não os tratamos, de como tantas vezes os deixamos entregues ao mais penoso dos sofrimentos.

Deixemos de parte, portanto, a política, porque ela também faz parte da democracia. O que fica de relevante deste longo debate é que se provou que já somos capazes de discutir maduramente as questões mais sensíveis.

O que vimos e vivemos foi um debate ético e moral, que até o Presidente católico promoveu activamente. Foi um estudo cuidadoso de outras leis, experimentadas noutros países. Foram propostas cuidadosas, cheias de travões para evitar riscos que nos seriam insuportáveis. Foi uma discussão final, ontem no Parlamento, onde se confrontaram visões, mas onde se procuraram argumentos. Houve excessos e incompreensões, porque sempre haverá, mas houve também prudência e tolerância. E assim fez-se um caminho.

Esse caminho não acabou aqui, porque nenhuma ‘causa’ acaba num voto — e porque sobrou muito para discutir. Segue-se toda uma campanha, também outros programas eleitorais, desta vez explícitos e mais fundamentados. Depois virão novos deputados e, provavelmente, uma nova votação. 

Até lá, porém, ficou claro que há uma enorme obrigação: a do Estado português de universalizar os cuidados paliativos — mesmo quando estes não resolvam a dor; a dos médicos, de debaterem como cuidar melhor; e a das famílias, de se consciencializarem de que o problema do fim da vida não é dos outros, acaba em cada um de nós.

O debate sobre a eutanásia dividiu-nos e vai dividir-nos sempre — até mesmo interiormente. O que nos une agora é essa estrita obrigação de cuidar melhor uns dos outros, também à beira da morte. Nessa missão não há tempo a perder. 

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