"A morte saiu à rua num dia assim"– In memoriam Carlos Correia

Carlos Correia nasceu em Lisboa em 1975, estudou na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha. Além de um doutoramento na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL), desenvolvia uma pós-graduação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da mesma universidade. Morreu em Lisboa na noite de sexta-feira para sábado, aos 43 anos.

Carlos Correia
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Carlos Correia DR
<i>S/título (3 Maio 035)</i>, de 2008
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S/título (3 Maio 035), de 2008
<i>S/título (Déjeuner 011)</i>, de 2010
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S/título (Déjeuner 011), de 2010

1. O desaparecimento, na flor da idade, de Carlos Correia, pesa tristemente sobre este tempo. Por ser um jovem artista que muitos seguíamos, atentos, e coincidir com a perda recente de Júlio Pomar que, por ser de outro tempo, chegou a ter o merecido reconhecimento. Tive o privilégio de o conhecer, e de partilhar com ele alguns projectos, acompanhando de perto o crescer da obra. Homem e artista sério, bom, talentoso, culto, invulgarmente delicado e sensível, pôs em quanto fez dedicação e profundidade. Inesperada perda que nos deixa mais pobres, e à arte portuguesa sem um dos que prometiam dar-lhe um sentido actual, defendido no mais alto plano.

2. E que assinala ainda – é necessária coragem para o enfrentar, ainda que difícil explicá-lo – a enorme injustiça que todos testemunhamos e a que, por sermos todos diversamente responsáveis, devemos contribuir para pôr rápido um fim: a de um tempo pobre em que a maioria dos criadores são desconsiderados, depreciados, esquecidos em benefício da manutenção de um mercado provinciano, saloio; de um público desatento, sem gosto; e de uma cultura de fachada, reduzida a uns quantos, poucos nomes, nem melhores nem piores, que todavia monopolizam toda a atenção e espaço de apresentação, e se tornou irrespirável já, por tão previsível.

3. Disso estamos fartos, mesmo se a responsabilidade é parcialmente de todos – historiadores, críticos, curadores, galeristas e até artistas – nós, os que lidamos com a arte e a cultura, num país abandonado à sua sorte. Já é tempo de o mudarmos. De reclamar dos responsáveis da cultura, instituições, imprensa e universidade, uma renovada atenção em vez do carnaval em cartaz: a que saiba merecer a dádiva constante de tantos criadores que passam desapercebidos apesar de quanto nos dão, em vez de nos encherem com descobertas inúteis, desinteressantes, ridículas, que apenas premeiam os seus promotores.

4. As séries de pinturas – embora melhor as referíssemos como imagens da pintura –, que Carlos Correia desenvolveu e mostrou nas últimas décadas, multiplicaram os signos em que se percebia a emergência na arte portuguesa de um sentido forte da contemporaneidade. Estas desenvolveram-se, programaticamente, em torno de alguns grandes eixos: as revisitações às imagens ‘canónicas’ da pintura, as mesas e arquitecturas, as cenas eróticas e o comentário visual a algumas questões teóricas da arte e aos seus autores referenciais, nos inúmeros livros de artista que realizou. Saúdem-se os galeristas que as souberam mostrar em devido tempo.

5. Nas notáveis pinturas da série desenvolvida em torno das imagens referenciais da pintura (Velásquez, Goya, Manet), podiam ver-se, diante de imagens das obras, silhuetas de espectadores interrompendo a visibilidade, introduzindo processos de distanciação de contornos brechtianos, que recolocavam a pintura face a um olhar lançado desde fora da órbita conceptual que tivera no Modernismo, para a fazer ressurgir na impureza (e na banalidade) das demais imagens, que assim entravam em situação de igualdade à do restante fluxo das imagens. Era o estatuto (e, uma vez mais, o lugar) do espectador que ali se interrogava: somos nós que vemos as imagens ou, ao contrário, são elas que nos vêem, nos olham, nos questionam? Seremos nós, espectadores, um elemento apenas na imensa cadeia da reprodutibilidade, veiculada na contemporaneidade pelos modelos de comunicação dominantes?

6. Nesse campo a obra de Carlos Correia introduziu uma subtil dimensão crítica e política, assumindo, de princípio, a compreensão decisiva de que as imagens do real terão que ser, hoje, as que reportam um espaço que foi, ele mesmo, duplicado, reproduzido, multiplicado até perder de vista, em ecos e sequências de imagens. Um real que deixou, como tal, de ser “original” para se tornar, ele mesmo, “reprodutivo”, alvo dessa infinita reprodutibilidade. Por isso nos aparecem, privilegiadamente, nesta pintura as imagens de interiores de museus como cenários propícios à emergência desses espectadores-multidão que hoje invadem todos os tempos e espaços, numa circulação errática. E se, em alguns dos trabalhos recentes, o artista recuperava, em imagens reproduzidas, as obras dos pintores que abriram os caminhos da modernidade estética, para as reinscrever de silhuetas que ocupavam, ironicamente, o “lugar do espectador”, esse processo reflectia, nas silhuetas recortadas e sombrias, a presença activa que, na contemporaneidade, passou a contagiar definitivamente o espaço artístico, e todo o espaço da cultura, transformando-o num espaço impuro, contaminado, incerto, que ele soube interrogar.

7. No espaço ténue, sombrio, da arte portuguesa actual, dominado por interesses de circunstância, que desmerecem, antes do mais, os próprios artistas, o seu desaparecimento deixa um vazio idêntico ao dessas silhuetas que ele tantas vezes colocou diante das obras dos mestres: um espaço esvaziado e sombrio, que nenhuma outra silhueta poderá ocupar. Numa entrevista de 2008, à questão: “Consegue olhar para o seu percurso e sintetizá-lo?” Respondia: “Aprender a levar porrada, e levantar-me com mais força. Não é fácil. Mas quando é bom, é muito bom.”

Que as instituições artísticas portuguesas não o esqueçam, é o que podemos, com justiça, reclamar agora em sua memória. E em memória da arte portuguesa contemporânea.

Artigo corrigido a 30/05 eliminando a referência, incorrecta, ao estado civil de Carlos Correia

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