A luz que começa a morrer (uma reflexão sobre o final da vida)

Quantos de nós, em Portugal, como doentes, sentimos que nos ouvem, que nos informam e que cumprem as nossas decisões em saúde?

O final da vida não tem partido, religião, idade, movimento cívico. Por isso devemos falar sobre o tema abertamente, sem etiquetas e sem complexos. A morte deixou de ser a “morte natural” e passou a ser a “morte medicalizada”: mais de metade dos portugueses morrem hoje nos hospitais. Muitas vezes sós, muito sós. Com dor desnecessária, com desconforto, sem serem escutados, com medo daquela “luz que começa a morrer”.

O debate sobre o final da vida tem-se centrado sobretudo na dignidade humana e no confronto entre os princípios da inviolabilidade da vida e da autonomia da vontade. Lamentavelmente, não se focou na necessidade de promover os instrumentos de decisão e o diálogo médico-paciente, nem no acesso equitativo aos cuidados de saúde, nem no acompanhamento familiar e hospitalar do doente em final de vida.

Partiu-se rapidamente para a via legislativa, como se todos os caminhos estivessem percorridos e esgotados e, muitas vezes invocando que “o debate em sociedade já foi realizado”, apresenta-se a eutanásia e o suicídio assistido como “a” solução.

Então, por que é que as mais recentes tentativas internacionais para legislar sobre eutanásia foram rejeitadas?

O anterior Presidente da República francês, François Hollande, e o seu Governo socialista souberam interpelar a sociedade, e entender que o mais significativo ainda estava por cumprir: respeitar a vontade de cada um nas decisões sobre a sua saúde, aliás já consagradas na lei, mas raramente cumpridas.

Em Inglaterra, exemplo de país europeu na vanguarda do progresso científico, o Parlamento, em 2015, rejeitou maioritariamente a alteração da lei que despenalizaria a eutanásia. O Parlamento finlandês acabou de rejeitar há poucos dias um projeto lei de legalização da eutanásia. Continuam assim sós, na Europa, os mesmos três países onde é permitida a prática da eutanásia e do suicídio assistido (Bélgica, Holanda e Luxemburgo), a que se junta a Suíça (onde só é permitido o suicídio assistido).

Naturalmente que os debates continuam, como, aliás, é esperado em temas que estão longe de ser consensuais e sobre os quais existem profundas dúvidas e divergências.

O que já é consensual na sociedade portuguesa está ainda longe de ser resolvido na prática: quem acompanhou os 12 debates que, durante oito meses o CNECV [Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida] organizou um pouco por todo o país sabe que uma preocupação fundamental dos cidadãos é a forma como se é ouvido, respeitado e acompanhado no final da vida.

Quantos de nós, em Portugal, como doentes, sentimos que nos ouvem, que nos informam e que cumprem as nossas decisões em saúde?

Recentemente, Barbara Bush, invocando uma “saúde declinante”, decidiu não continuar o seu tratamento médico e manter só os cuidados paliativos. A sua decisão foi respeitada. E muito bem. Como o seria hoje em Portugal? Será que cada um de nós teria essa oportunidade, o respeito pela vontade e a via paliativa para qualquer cidadão? Ou se continuaria obstinadamente a insistir? Ou se ignorava a decisão por não haver um serviço de cuidados paliativos ou formação para tal? Ou simplesmente porque, no hospital que nos coube em sorte, não há espaço, nem tempo, para nos dar a mão e ouvir?

No recente parecer do CNECV sobre esta matéria pode ler-se a constatação que cada um de nós já sentiu, de que “na sociedade atual existe uma desigualdade, ética e socialmente inaceitável, no acesso a cuidados e ao acompanhamento do doente em fase final de vida e da sua família/pessoas significativas. As iniquidades verificadas estão, em muito, relacionadas com determinantes de ordem social, económica, geográfica e individual dos cidadãos”.

Enquanto não existir equidade no acesso aos cuidados, como poderemos progredir? A resposta a esta iniquidade é a eutanásia? Que passo civilizacional pode ser dado e em nome de quem?

Os processos de decisão apressados são um risco que não deve ser assumido. Investigar erros nesse processo depois de se praticar uma eutanásia seriam necessários e justificados, mas muito tardios para quem já partiu apressadamente.

Na dúvida, a nossa obrigação é a de tomar decisões o mais prudentes possível. Não é vergonha nem retrocesso reconhecê-lo. O que constitui um verdadeiro retrocesso, eticamente inaceitável, é não saber parar quando é preciso, não estabelecer guidelines uniformes aplicáveis às manobras de não reanimação, aos critérios de tratamentos fúteis, não informar devidamente os pacientes, não ter tempo para dedicar, como refere o CNECV, “à apreciação da genuína expressão de uma vontade própria e a verificação da ausência de fatores externos que possam estar a condicionar a decisão de pedir a morte”, não investir numa cultura de humanidade.

E isto, sim, é verdadeiramente indigno.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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