Mais uma conquista social

Não compete ao Estado, nem muito menos a grupos de interesses morais ou religiosos, limitar a liberdade individual dos seus cidadãos.

A dimensão da legalização do aborto na Irlanda é um acontecimento importante. A enorme participação, a diferença de votos e a coerência do voto em todo o território deitaram abaixo uma das grandes violências institucionalizadas contra metade da população de um país.

Durante 35 anos repetiram-se os mesmos argumentos que já se tinham ouvido em muitos outros pontos do globo (como em Portugal): que a vida humana é inviolável, que a liberalização iria provocar o disparar do número de abortos, que a sociedade se iria tornar mais devassa. Tudo para disfarçar um garrote do patriarcado sobre o direito da mulher ao seu próprio corpo, algo inaceitável na Europa civilizada do século XXI.

Finalmente terminou. A tendência das sociedades mais desenvolvidas é assumirem que as escolhas individuais são exactamente isso, individuais. Não compete ao Estado, nem muito menos a grupos de interesses morais ou religiosos, limitar a liberdade individual dos seus cidadãos. E isto porque a liberdade individual tende a andar a par com a tolerância e o progresso social, o que por regra está em linha com o aumento da literacia e redução da ignorância.

Esta reflexão ocorre numa semana decisiva para perceber o que vai acontecer à eutanásia em Portugal. Apesar da aprovação tardia da lei do aborto, a gestão social dos vários direitos tem sido quase exemplar — até porque a grande percentagem de portugueses que se declara católica tem o bom senso de não deixar que isso afecte a sua sensatez e por isso tem sido possível uma tranquila evolução, ainda que lenta, dos direitos sociais. Agora volta a ver--se o mesmo cenário: a união dos sectores conservadores compostos por comunistas e católicos está a tentar limitar, enquanto for possível, mais uma conquista social.

Em Portugal como na Irlanda, no aborto como na eutanásia, trata-se de um direito do indivíduo em que o Estado se deve intrometer o menos possível. É importante ter isto em conta quando se ouvem argumentos que presumem a inviolabilidade da vida humana, porque o primado do direito pessoal se sobrepõe a uma suposta lógica ética que se aplique de forma genérica. Ainda há muito para fazer, porque os direitos sociais nunca estão plenamente conquistados — e o movimento #MeToo está aí para recordar que não chega a letra de lei para garantir a plenitude dos direitos.

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