História Redux

Estas “aprendizagens essenciais” são uma espécie de História Básica, com boas intenções em abundância e escassez de perturbações.

Sempre que ouço ou leio um governante a declarar amores infinitos pelas Ciências Sociais e em particular pela História já sei que qualquer coisa má se prepara. É um preconceito que assumo. Portanto, logo que se começou a falar em “obesidade curricular” e na necessidade de combater os saberes “enciclopédicos” em prol de “aprendizagens essenciais”, percebi que se estava perante uma cortina de fumo para justificar cortes aqui para dar ali. A confirmação veio com os documentos em “discussão pública” sobre as tais aprendizagens para o Ensino Básico que são “essenciais” no sentido de legitimar a redução das horas a atribuir à História (vou concentrar-me nesta disciplina e em História e Geografia de Portugal por serem as da minha formação académica e que lecciono há 30 anos) ou a sua transformação numa curiosidade curricular semestral que destruirá qualquer noção de continuidade do trabalho com os alunos numa disciplina que tem no Tempo um dos seus princípios estruturantes.

O que as “metas curriculares” do anterior mandato tinham em excesso (quase 200 metas específicas só para o 5.º ano), estas “aprendizagens” têm em defeito (menos de 40 aprendizagens enumeradas, se excluirmos as enumerações de conceitos, para o mesmo ano). Mas, mais do que a comparação da quantidade de descritores, é importante perceber o sentido da “selecção” dos conteúdos a abordar como “essenciais” e aqueles que se consideram como “enciclopédicos”, logo não essenciais. E analisar o “discurso” elaborado em torno de tais aprendizagens. No caso da disciplina de HGP, os conteúdos relacionados com a Pré-História e Antiguidade tornam-se ainda mais esqueléticos do que eram com a quase total supressão dos relacionados com a presença romana na Península Ibérica. Parece que é “essencial” apenas “identificar ações de resistência à presença dos romanos” e “aplicar o método de datação a.C. e d.C.”; isto é mesmo muito pouco e até noto com estranheza a questão da “resistência” à romanização, a lembrar um pouco a História Patriótica centrada no papel dos Lusitanos que se ensinava em meados do século XX. Em contrapartida, temos a introdução de uma retórica com escasso sentido na perspectiva da História quando se afirma “que o processo de sedentarização implicou uma maior cooperação interpessoal, criando as bases da vida em sociedade e, a longo prazo, das noções de cidadania” a propósito da sociedades neolíticas, quando esse tipo de “noções” está ausente dos conteúdos relacionados com a revolução liberal, a implantação da República ou o próprio regime democrático saído do 25 de Abril de 1974.

A lista e o “estilo” das aprendizagens parece ter resultado de um esforço de corte e colagem que nem sempre deixa as coisas com um nexo compreensível. No caso do 6.º ano, se acho pouco problemático o quase completo desaparecimento da vida quotidiana na segunda metade do século XIX, já considero questionável a opção por um tratamento híper-esquemático de quase todo o século XX, com uma listagem mínima de aprendizagens essenciais para o período que vai do declínio da Monarquia Constitucional até à implantação do regime democrático depois de 25 de Abril de 1974. Até agora, alinhavam-se 12 metas gerais e cerca de 60 específicas. Agora restam seis aprendizagens, das quais se excluem as causas da queda da I República, qualquer referência à Ditadura Militar ou à subida de Salazar ao poder. Mais curioso, quando no 5.º ano existem referências explícitas a 1383/85 e 1578/80 como momentos de rotura e/ou crise da sociedade portuguesa, no 6.º ano existe um enorme vazio a esse respeito para momentos como 1910, 1926 ou 1974. Se existem referências às Constituições de 1822 e 1911, nenhuma existe às de 1933 e 1976. Sobre a transição da ditadura para a democracia basta “reconhecer os motivos que conduziram à revolução do 25 de abril, bem como algumas das mudanças operadas” e “caracterizar o essencial do processo de democratização entre 1975 e 1982”, ficando ao livre arbítrio (autonomia?) determinar quais os “motivos” ou o que se pode considerar “o essencial do processo de democratização”.

Nas aprendizagens relacionadas com a Geografia, no final do 6.º ano, alinha-se uma série de conceitos a aplicar pelos alunos que eu qualificaria como “enciclopédica” e redundante, por muitos deles já serem usados em conteúdos anteriores. Em apenas dois domínios (população e actividades económicas) alinham-se cerca de 50 conceitos.

Este tipo de abordagem algo confusa e truncada repete-se para a História do 3.º ciclo. No 7.º ano a Pré-História e a Antiguidade voltam a ser tratadas de modo esquemático e generalista. A abordagem de, pelo menos, uma civilização pré-clássica deixa de ser “essencial” desaparecendo qualquer referência ao Egipto Antigo, como já acontecera há anos com a Mesopotâmia. Sobre a Grécia Clássica e Roma pouco ou nada é tido como “essencial”. Sobrevive à dieta curricular a análise da “experiência democrática de Atenas do século V a.C., nomeadamente a importância do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, identificando as suas limitações”, desaparecendo novamente o contraponto espartano e sendo eliminada qualquer referência clara à matriz grega de saberes como a Filosofia, a própria História ou o pensamento racional. Atenas surge sem qualquer contexto histórico. Como acontece com Roma, tratada apenas a partir do século II d.C., ignorando-se o processo de expansão e formação do Império e os antecedentes republicanos.

Mas as minhas maiores reservas colocam-se à forma vaga como se apresenta o que é “essencial” sobre a primeira metade do século XX, em particular sobre a contextualização das duas guerras mundiais ou a ascensão das ditaduras no período entre-guerras. “Relacionar a ascensão ao poder de partidos totalitários com as dificuldades económicas e sociais e com o receio da expansão do socialismo, realçando o papel da propaganda”, deixa de fora todo o aparato da violência política do período (e o próprio Holocausto) e “descrever as principais caraterísticas dos regimes totalitários” deixa-nos perante a necessidade (dilema?) de definir com clareza o que é totalitário ou não ou então de optar pela metodologia “todos ao molho”. Quanto a Portugal, a Ditadura Militar continua a ser não essencial e em relação à transição para a democracia as aprendizagens são apresentadas de uma forma que desafia a cronologia, colocando o 25 de Novembro depois da descolonização e do próprio PREC.

Procurando resumir: estas “aprendizagens essenciais” são uma espécie de História Básica para ensinar às crianças e jovens, de “programa mínimo”, com boas intenções em abundância e escassez de perturbações, transformando-a numa sucessão de episódios quase isolados, no que em tempos poderíamos caracterizar como uma abordagem estruturalista, mas com uma enorme pobreza de informação, tida por “enciclopédica”. Os autores destas “aprendizagens” parecem ter ficado perdidos numa terra de ninguém conceptual, algures em meados do século XX, sem saber se aderir a Lévi-Strauss se a Braudel. Ambos já algo ultrapassados no século XXI.

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