Um homem que fala aos outros homens

Uma antologia do grande poeta romântico inglês que é uma notável prova de fogo: virtuosismo e fidelidade ao texto, rigor e inventividade tornam esta tradução de Daniel Jonas uma referência imprescindível.

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Figura de proa do primeiro romantismo inglês, Wordsworth concentrou em si todos os influxos do período em que viveu e escreveu

Num remoque destinado a tornar-se proverbial, Philip Larkin escreveu: “A privação é, para mim, o que os narcisos eram para Wordsworth.” Larkin teria, sem dúvida, em mente os seguintes versos: “Passava só como uma névoa/ Que sonda montes e valados,/ Quando, oh, de súbito uma révoa,/ Um mar de Narcisos dourados;/ Ao pé do lago, da ramagem,/ Vibrando, dançando na aragem” (p. 263). William Wordsworth foi, numa área nada negligenciável da sua poesia, um poeta da natureza. Mas que dizer de um cultor dessa veia que pôde ainda ter por contemporâneos Crabbe, Burns ou Cowper? Que ele está, simultaneamente, muito perto e demasiado longe deles. Wordsworth referiu-se a Robert Burns com apreço, chegando mesmo a brindar a obra do escocês com a metáfora horaciana de um monumento perene. Por outro lado, ressalvando em William Cowper um “apreciador apaixonado dos objectos naturais”, acusava-o de ter ainda por “maravilhoso” esse seu afecto pela natureza. De George Crabbe, diria Wordsworth que aos seus versos “de maneira nenhuma se podia chamar poesia”. Nesse sentido, a poesia “campestre” de Wordsworth (que já não convencionalmente pastoril) situa-se noutras coordenadas, necessariamente. Figura de proa do primeiro romantismo inglês, concentrou em si todos os influxos do período em que viveu e escreveu. Como disse, não sem acrimónia, o eminente crítico William Hazlitt (já depois de se desentender com o poeta), “o espírito do Sr. Wordsworth é pura emanação do Espírito da Época.” Descontada a diatribe, é certo que o poeta foi um interventor directo e empenhado na revolução poética que recebeu um dos seus golpes mais geniais com as Lyrical Ballads, escritas em colaboração com S. T. Coleridge. Thomas De Quincey falaria mesmo em “regeneração da nossa poesia nacional”, a propósito de Wordsworth e do seu círculo.

Como lembra Daniel Jonas, autor desta admirável tradução, Wordsworth defendia uma “dicção que via como desejável a aproximação do poema à pessoa comum, usando para isso uma linguagem acessível e coloquial, desobstruída das construções pomposas e afectadas que se haviam aclimatado ao ecossistema literário setecentista” (p. 8). No verdadeiro manifesto em que se tornou o prefácio à segunda edição daquela colectânea, Wordsworth repudiava “a fraseologia oca de muitos escritores modernos” (Poética Romântica Inglesa, organização de Alcinda Pinheiro de Sousa e João Ferreira Duarte, Apáginastantas, 1985). O seu programa passaria, então, por “escolher incidentes e situações da vida de todos os dias e relatá-los ou descrevê-los, tanto quanto possível, numa selecção da linguagem realmente usada pelos homens” (id.). O poeta, escreveria, mesmo, numa fórmula que se tornaria uma divisa, é “um homem que fala aos outros homens” (id.). Verdadeiro ensaio para uma nova concepção de poesia, o prefácio de Wordsworth estipulava: “Toda a poesia é o transbordar espontâneo de poderosos sentimentos” (id.), com origem na “emoção recordada em tranquilidade” (id.). O que é, não só uma afirmação irredutível do espírito romântico, mas também uma antecipação de alguns dos credos do modernismo, na separação que ensaia já entre emoção e oficina, sentimento e transposição escrita. O coloquialismo destes poemas, muitos dos quais possuem, realmente, a tonalidade de autênticas conversas, ressalta nessas conexões com que a frase ata e deslaça os seus nós — “Chegara, como disse,/ Um temo conturbado; artesãos/ Eram dispensados dos trabalhos/ E postos a pedir por pão e esmola” (p. 35) Razão pela qual tantas palavras surgem sincopadas, contraídas, afeitas ao fluxo da fala: “Pla harmonia e coa força da alegria,/ Olhamos a vida das coisas” (p. 89); “pra falar assim melhor ser mudo” (p. 165).

O poeta é, com grande frequência, um viandante, cumprindo a herança de Rousseau, largamente assinalada por diversos comentadores — “Andei por muitos montes, muitos vales,/ Com este peso em mim, ao sol, ao frio,/ Por bosques e clareiras, com céu limpo/ E céu nublado, à chuva, com bom tempo,/ Agora alegre, agora cabisbaixo,/ Guiado pelos ventos, meus amigos,/ Ao trote dos ribeiros” (p. 47). O romântico é um ser em intensa comunhão com a natureza, que faz reviver nas mais escassas incidências o ânimo universal que precede os fenómenos naturais. Uma anotação de Wordsworth inserida no final destes Poemas Escolhidos revela-nos as recordações do poeta, e o efeito temperador, apaziguante e concentrador do mundo natural: “Era frequentemente incapaz de pensar que as coisas exteriores tivessem uma existência exterior, e eu comungava com tudo o que via como coisas que me fossem inerentes à minha própria natureza imaterial. Mutas vezes a caminho da escola olhei para um muro ou para uma árvore que me despertasse deste abismo idealista para a realidade” (p. 301). Nessa recuperação do olhar primevo, inicial, sobre o “real” da natureza, adquire especial importância a infância, e a criança. No seu longo poema O Prelúdio (Relógio D’Água, 2010, tradução de Maria de Lourdes Guimarães), Wordsworth evoca a infância como ponto axial para a descoberta do eu essencial do poeta. “Perto de uma fonte, escuto as graves histórias/ Acerca de terríveis encantamentos que uma alma forte/ Enfrentou e venceu”, lemos em O Prelúdio, ao passo que em certos versos de Poemas Escolhidos resgatam contos que o poeta ouviu “na meninice/ Sobre zagais, locais dos vales, homens/ Que [...] já estimava” (p. 149). A figura infantil, realçada por tantos dos poemas antologiados em Poemas Escolhidos, é muito menos um lugar de sentimentalismo, ou embevecimento, do que um pórtico privilegiado para sondar o conhecimento — “o pensamento/ Está na infância” (p. 23), lê-se no poema O Casebre em Ruínas.

Daniel Jonas chamou à selecção por si traduzida, prefaciada e anotada uma “colectânea paisagística da obra” (p. 13) de William Wordsworth. Assim é. Menos interessada em rastrear os poemas do romântico inglês livro a livro, com minúcia “representativa”, esta recolha visa estabelecer uma base que tem por pressuposto e plano de trabalho a escrita dos poemas. Daí que a data da primeira composição seja indicada “no final de cada poema inglês” (p. 295). Uma formulação que cria a oportunidade ideal para arriscar que estas traduções, mais do que versões, são, precisamente, poemas em português. Porque há neles um investimento e um desvelo que ultrapassam por completo o esforço sempre meritório da descodificação linguística. Numa antologia que reúne quase meia centena de poemas — vários dos quais são longas composições meditativas, de carácter “narrativo”, por vezes divididas em diferentes partes —, os exemplos, naturalmente, abundam, sobrepondo-se mesmo à necessidade imperiosa de optar: “Dono de alma/ Invulgar” (p. 19), por exemplo, traduz “He was one who owned/ No common soul.” (p. 18) Atente-se, no entanto, ainda no seguinte. Em “Descanso não achava, nem o rosto/ Poupara à reunião de um ror de insectos/ em árida harmonia de murmúrios” (p. 27), usos como “ror”, fisgado habilmente, na brevidade monossilábica do termo preciso e “rústico”, combinam-se em admirável acordo com processos frásicos de maior elaboração, tal a “harmonia de murmúrios”. São casos em que é difícil (e porventura ocioso) traçar uma fronteira demasiado rígida entre o inequívoco louvor desta tradução e a importância de traduzir um poeta da estatura de Wordsworth.

A duríssima prova da rima e da métrica (autêntico diatlo ao alcance de muito poucos atletas) é superada com grande perícia por Daniel Jonas, que verte (um exemplo entre distintas possibilidades) a estrofe “There is a blessing in the air,/ Which seems a sense of joy to yield/ To the bare trees, and mountains bare,/ And grass in the green field.” (p. 68) como “Há no ar um santo desvelo,/ Que bom render-nos à folhagem/ Das copas, da montanha em pêlo,/ Da erva na pastagem” (p. 69). Uma operação da linguagem que consiste em ter como princípio norteador a fidelidade ao espírito, sem perder de vista a letra, mas afeiçoando-a às exigências do mister poético: sonoridade, fluência, quantidade silábica. O mesmo se diga de converter “lofty cliffs” (p. 86) em “penhas altaneiras” (p. 87). A ousadia é, felizmente, sempre atravessada pelo escrúpulo da mais rigorosa lealdade ao poema: “o sabre” (p. 103) que designa a silhueta da lua é não só exacto, no ímpeto da sua imagética, como ganha, obviamente, em poder de sugestão, contenção de meios e eufonia. O léxico seleccionado intersecta, cuidadosamente, os impulsos da língua de partida, com as necessidades da prosódia, o metro e o “encaixe” minucioso que todo o verso deve ser: “Da Lucy Gray amiúde ouvia:/ E sendo eu andejo,/ Calhou ver ao nascer do dia/ A moça no brejo.” (p. 123) Uma capacidade de reinvenção dentro da fidelidade textual que alia virtuosismo vocabular ao esmero na composição — note-se que todas as rimas são ricas (não se repetindo classes gramaticais). Perfeição formal várias vezes repetida ao longo destes poemas: “Olha quem chega! A voz suave/ Que me traz alegria./ Ó cuco! Posso chamar-te ave/ Ou uma voz vadia?” (p. 191). Um poema em que o tradutor, de resto, teve de superar a fragilidade de conteúdo dos versos, aplicando sobre eles a mesma precisão que prodigalizou em composições de voo muito mais amplo e duradouro, e também presentes nesta antologia, como Sugestões de Imortalidade, os Versos sugeridos pela Abadia de Tintern, ou aquele poema cujo incipit é “Passava só como uma névoa”.

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