Finalmente, um tiro no porta-aviões

Com a Itália, a crise das democracias acaba de atingir um novo patamar, desta vez incontornável.

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1. Algumas mentes mais lúcidas andam a insistir há muito em que a verdadeira – ou a mais grave – crise europeia é a das suas democracias. Hoje, sobram exemplos de que tinham razão. As forças populistas e nacionalistas, que desafiam em quase toda a parte os partidos do sistema, vieram para ficar, desafiando igualmente a integração europeia e os valores sobre os quais foi construída. Alguns países tentam montar um cordão sanitário em torno desses partidos. Outros preferem o “abraço do urso”, tentando atraí-los para os governos de forma a provarem a sua inutilidade, ou rendendo-se a algumas das suas bandeiras. Tudo isto, já sabíamos. Em Budapeste, Viktor Orbán proclamou o fim da democracia liberal e anunciou o novo combate “em defesa da cristandade”. Em Varsóvia, é proibido acusar os polacos de qualquer responsabilidade no Holocausto. Nas duas capitais, a Europa é um fardo que se justifica porque garante segurança e uma enxurrada de euros. À boa maneira europeia, os governos europeus têm deixado à Comissão, guardiã dos tratados, a resolução “técnica” das infracções ao Estado de Direito. A partir de agora, podemos esquecer tudo isto. Chegou finalmente o momento em que o silêncio deixou de ser possível.

2. A crise das democracias acaba de atingir um novo patamar, desta vez incontornável. A Itália, uma democracia madura, fundadora da Comunidade, terceira economia do euro, membro do G7 e da NATO, que já foi um dos países mais intrinsecamente europeístas, está prestes a ver empossado um governo constituído pela coligação entre dois partidos anti-sistema: o populista Cinco Estrelas e a Liga, de extrema-direita nacionalista. A primeira constatação é que os partidos que vão governar em Roma têm toda a legitimidade para o fazer: foram eleitos pela escolha livre dos italianos. A segunda constatação é que, apesar de tentarem disfarçar a sua profunda natureza antieuropeia (para não dizer antidemocrática), venceram com programas que põem em causa a integração europeia, incluindo o euro, de que a Itália é igualmente um país fundador.

O seu programa oficial tenta disfarçar as arestas mais pontiagudas, porque a opinião pública italiana ainda não está preparada para rejeitar a Europa e o mundo económico nem quer ouvir falar disso. Fazem-no também porque o Presidente da República, Sergio Mattarelli, não aceitaria um governo com esses objectivos no programa. Mas é muito mais importante a primeira versão do seu “contrato de governo”, que fugiu para a imprensa no início da semana passada, onde a saída do euro era abertamente defendida, bem como o perdão da parte da dívida soberana contraída com o BCE através de compra de títulos no mercado secundário, e onde estava inscrita uma verdadeira pérola sobre a forma como olham a Europa: aliar-se à Rússia e aos EUA para derrotar a Alemanha. O programa oficial exclui estas tiradas ideológicas por mero realismo, mas elas são fundamentais para perceber o que aí vem.

Convém recordar as origens do movimento lançado em 2007 pela figura bem mais grotesca de Beppe Grillo: contra a democracia representativa (dispensando, por isso, o Parlamento), pela democracia directa. Di Maio, 31 anos, tem outra aparência. A Liga, que governou com Berlusconi, protege o interesse dos mais ricos (já se chamou Liga Norte, porque não queria que a metade rica da Itália transferisse parte da sua riqueza para a metade pobre). O grande emblema, comum aos dois, é a imigração. A Liga, que vence qualquer concurso de xenofobia, propôs o repatriamento de 500 mil imigrantes ilegais e condições muito mais duras para os que tentem ficar ou entrar. A imigração passa a ser um caso de polícia. O programa oficial evita quantificações. Por alguma razão, o Financial Times escrevia que os “bárbaros estavam às portas de Roma”.

3. A questão imediata é o euro. Quando estamos a pouco mais de um mês de um Conselho Europeu no qual Angela Merkel e Emmanuel Macron se comprometeram a apresentar, finalmente, uma proposta para a reforma da União Económica e Monetária, já de si muito difícil de negociar, o novo governo italiano dá à chanceler alemã um manancial de argumentos para travar a ambição do Presidente francês. O novo governo de Roma apresenta um programa económico que “rebentará” com as metas estabelecidas para o défice. Diz que é preciso rever as regras de funcionamento da união monetária. Dois exemplos. Di Maio prometeu um rendimento básico generalizado (780 euros), que custaria milhares de milhões aos cofres do Estado. O novo programa admite que possa ser gradual. A Finlândia criou um projecto-piloto para pôr em prática esta ideia, hoje muito em voga em alguns meios, mas já o cancelou. A Liga prometeu uma “taxa única” para os rendimentos singulares e empresas (15%), que reduziria a colecta de impostos em outros tantos milhares de milhões. O programa oficial introduz também algum gradualismo.

4. Os mais optimistas ainda dizem que a “máquina trituradora” de Bruxelas é capaz de transformar o mais empedernido eurocéptico num europeísta respeitável. Já foi assim. Há três anos, ninguém, nem sequer David Cameron, acreditava que o Reino Unido sairia da União Europeia. Há dois anos, ninguém acreditava que Donald Trump seria hoje o Presidente americano. Há quatro anos, ninguém acreditava que Putin transformaria a Rússia numa potência revisionista, com uma estratégia agressiva para reconquistar influência. A entrada em cena do populismo e do nacionalismo na Europa é, porventura, a sua maior vitória política e o seu mais eficaz instrumento para desestabilizar e dividir a União Europeia. Ou seja, que Orbán se dê bem com Putin é uma coisa. Que Roma, uma das potências militares europeias, caia para o seu lado, é outra completamente diferente. No programa devidamente depurado para apresentar no Quirinal, o levantamento das sanções contra a Rússia na sequência da crise ucraniana mantém-se. As palavras são mais cuidadosas: os EUA são um “aliado”; a Rússia um “parceiro”.

5. Os optimistas empedernidos ainda se agarram a outros argumentos, alguns dos quais verdadeiros. Por exemplo, que a disfuncionalidade do sistema político italiano será uma barreira intransponível para um governo anti-sistema, como foi para todos os outros. Dão o exemplo de Roma, onde a candidata do Cinco Estrelas que conquistou a câmara está envolvida em escândalos. Que os tribunais funcionam, como aconteceu com a operação “Mãos Limpas” nos anos 90, e com Berlusconi mais recentemente, e os media são fortes e basicamente livres. Que a influência humanista da Igreja é grande. Que a economia italiana, apesar da estagnação da última década, mantém alguns trunfos respeitáveis. Tudo isto é verdade. Falta a parte mais grave: a Itália é um peso pesado que provavelmente porá a Europa, de novo, a andar para trás. Ninguém vai poder encolher os ombros.

6. De Berlim, tardam os sinais de que a chanceler está disposta a travar a sua última batalha pela Europa. A Itália poderia ser mais um alerta. Pode ser apenas um pretexto. E há ainda outra conclusão na qual todos os governos europeus devem reflectir. Seria possível manter durante décadas um desemprego jovem a rondar os 30%, como aconteceu em Itália e noutros países, sem consequências políticas? Seria possível aguentar durante muito tempo o aumento constante das desigualdades em todas as democracias europeias, incluindo as nórdicas, sem consequências políticas? Seria possível sobreviver a uma crise existencial que durou dez anos e que impôs aos países do Sul programas de austeridade ignorantes da realidade e indiferentes aos efeitos sociais? A crise teria inevitavelmente consequências políticas, que ninguém quis levar em consideração.

Falta apenas a questão fundamental: pode a Itália arrastar o euro para uma nova crise? Se a resposta for sim, sabemos o que vai acontecer. Tal como a conhecemos, a Europa dificilmente sobreviverá. Nas capitais europeias, reina o mais profundo silêncio.

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