Provar Pequim, do pato assado ao banquete dos imperadores
Dourado e brilhante, o pato é servido no Dadong como ícone de uma gastronomia com cinco séculos de tradição. Uma longa história que pode ser apreciada no Museu da Gastronomia Imperial.
Mais que ir a Roma e não ver o Papa, impensável mesmo é passar pela capital chinesa e não provar o célebre pato assado, uma receita de que há relatos pelo menos desde o século XIII e sempre associada aos banquetes das cortes imperiais chinesas.
Pequim e pato são, portanto, indissociáveis, se bem que só a partir do século XV o assado tenha passado a estar ligado à cidade, depois de a Dinastia Ming para aí ter deslocalizado a capital antes instalada em Nanquim. Demoraria, no entanto, ainda mais de dois séculos até que o prato saltasse os muros dos aposentos imperiais para se tornar verdadeiramente icónico e popular.
Os historiadores contam que foi já em 1864 que abriu na capital o primeiro restaurante dedicado ao pato assado, iniciativa de um comerciante de patos e galinhas que para o efeito desafiou um antigo cozinheiro do palácio real. É, pois, a partir daí que verdadeiramente a receita passa a ser conhecida como o pato à Pequim e rezam as crónicas que se contam hoje por vários milhares o número de aves que diariamente são consumidas na capital chinesa.
Muitos são também os restaurantes a puxar de credenciais para exibir a melhor ou a mais genuína receita, mas parece consensual que o mais reconhecido e prestigiado é o Dadong, hoje instalado num moderno edifício espelhado do centro da capital e rodeado de lojas das mais luxuosas marcas internacionais. É preciso subir depois até ao quinto andar, onde o ambiente espalhado e o amplo espaço decorado a branco logo se insinuam no contexto de novo luxo.
A par de fotos e dedicatórias de ilustres como o realizador Steven Spielberg ou múltiplos dignitários internacionais, a extensa carta (um livro de capa dura com dezenas de páginas de requintados e criativos menus a partir da cozinha tradicional chinesa) e uma lista de vinhos (também em livro) com boa parte dos ícones mundiais do sector, não deixam espaço para dúvidas.
Alguns vinhos à parte — sobretudo champanhes — diga-se desde já que quanto ao pato, e olhando aos preços europeus, a coisa estará até bem acessível: os 198 renminbi pedidos para cada exemplar não ultrapassam os 30 euros, e a dose é suficiente para servir três a quatro comensais. Com cerveja — que até liga com a pele crocante — a conta acaba mesmo contida, mas há também na lista alguns brancos de qualidade interessante a preços absolutamente normais.
E se pela carne macia e suculenta e pele crocante o pato cativa o palato, o ritual de serviço representa ainda um atractivo extra. Dourado e brilhante, chega inteiro e é dissecado em frente à mesa com tal mestria que as finas fatias de carne quase recompõem a ave na travessa, que é colocada no centro giratório da mesa.
Manda a tradição que, depois de depenados e limpos, os patos gordos são insuflados de forma a fazer separar a pele da gordura. Depois de escaldados, há que os pendurar e uma vez escorridos são “encerados” com xarope de maltose que lhe vai dar a cor dourada depois da assadura no forno em espeto rolante, ao estilo do leitão da Bairrada.
É servido com panquecas, molho adocicado de feijão, palitos de pepino e de caule de cebola, alho picado e sal a gosto, que se enrolam com as fatias de carne e comem à mão, tal como a pele crocante. Com os ossos e gordura restantes é feito um consomé que é servido no final do repasto.
E mesmo que do ponto de vista gastronómico não se revele absolutamente excitante, é claramente uma experiência imperdível sem a qual ficará sempre incompleta qualquer passagem pela capital chinesa.
Cozinha imperial
Visita que neste caso teve lugar no âmbito do Concurso Mundial de Bruxelas, evento que avalia vinhos de todo o Mundo e foi na edição deste ano acolhido em Pequim. E foi neste contexto que a cidade proporcionou aos participantes uma experiência gastronómica, esta sim, única e excepcional.
Foi no Xiandu Royal Gastronomy Museum, um espaço museológico dedicado à gastronomia imperial que pretende mostrar as origens de uma tradição culinária com mais de cinco séculos e a sua evolução ao longo das várias dinastias. A culminar a visita, um jantar ao estilo imperial, não só com pratos a remeter para sabores e receitas da época, mas também envolvidas numa extraordinária e deslumbrante encenação, a recrear o ambiente dos banquetes que eram servidos à família imperial.
Memorável e emocionante, incluindo a vertente gastronómica, com um menu que, depois de alguns acepipes ao estilo da dinastia Qing, incluiu um soberbo caldo de cogumelos, estufado de tartaruga e assado de borrego, cujas texturas, sabores e envolvência andaram perfeitamente a par com a exuberância cénica.
Esta sim, uma sensação única, intensa e exaltante. E até com aquela ponta de emoção que é o corolário das experiências gastronómicas verdadeiramente marcantes.