Gabinete de Sócrates passou emails do PÚBLICO ao Expresso, diz ex-director

Henrique Monteiro diz que a equipa do então primeiro-ministro deu ao semanário correspondência interna do PÚBLICO e que se recusou a publicá-la. No dia seguinte, foi manchete no Diário de Notícias. Um ano depois, o DN foi censurado pela Comissão da Carteira.

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Os factos remontam a 2009, altura em que José Sócrates era primeiro-ministro Nuno Ferreira Santos / Arquivo

O antigo director do Expresso, Henrique Monteiro, revelou nesta quinta-feira à noite que o gabinete de José Sócrates, quando este era primeiro-ministro, entregou cópias de correspondência interna do PÚBLICO a uma jornalista daquele semanário, com o intuito de "se vingar" do diário, por este ter investigado a licenciatura do governante socialista.

A novidade veio a público durante um debate emitido pela SIC Notícias em que participavam Henrique Monteiro, José Manuel Fernandes (director do PÚBLICO naquela altura) e Ricardo Dias Felner, ex-jornalista do PÚBLICO e autor de alguns dos trabalhos sobre o dossier da licenciatura. E para a compreender é preciso remontar a factos que datam a 2009 e que envolvem outro jornal, o Diário de Notícias, então dirigido por João Marcelino. Ficou para a história como "Caso das Escutas" – e deu azo a estudos académicos na área do jornalismo (PDF, aqui), levando o Presidente Cavaco Silva a dirigir-se ao país através da TV, numa mensagem de 11 minutos.

A 18 de Setembro de 2009, o Diário de Notícias (DN) sai para as bancas com uma primeira página que tem Fernando Lima, então assessor do Presidente da República Cavaco Silva, sobre um fundo preto e com um título que indicava que Lima era a fonte de notícias divulgadas pelo PÚBLICO um mês antes. Essas notícias davam conta de que em Belém havia a suspeita de a Presidência estar sob vigilância por parte do Governo, então liderado por Sócrates.

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A capa do DN de 18/09/2009

Para sustentar a tese de que Lima era a fonte do PÚBLICO, o DN publicou cópias de uma alegada mensagem de correio electrónico de um jornalista do PÚBLICO que, no entender do DN, revelava a fonte das notícias de Agosto e que provaria, segundo o diário detido pela Controlinveste, que as tais notícias sobre a vigilância de São Bento a Belém não passariam de uma farsa montada pela Presidência.

O que Henrique Monteiro revelou nesta quinta-feira é que tais cópias de correspondência interna do PÚBLICO foram entregues ao Expresso por alguém "do gabinete do primeiro-ministro", José Sócrates – algo que, disse José Manuel Fernandes, era uma novidade até para o próprio jornalista que então dirigia o PÚBLICO. 

Um ano mais tarde, o DN viria a ser sancionado pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas, acusado por "infracção grave" e "dolo intenso" cometido quando violou correspondência de jornalistas do PÚBLICO. Coisa que a direcção do Expresso se recusou a fazer, porque a fonte dos documentos não permitiu a sua identificação.

Recordando esse caso "inacreditável" na SIC Notícias, Henrique Monteiro afirmou que "essa história aparece toda no Expresso, enviada pelo gabinete do primeiro-ministro, pelo pessoal ligado ao Sócrates", aludindo à correspondência que a direcção do semanário acabou por não querer tratar pela razão já referida. "Nós, na direcção do Expresso olhámos para aquilo [os mails], que já tinham um ano, e dissemos 'nós temos de dizer de onde é que isto aparece, porque não foi enviado por nós e é uma violação de correspondência interna'".

Repetindo que "toda essa correspondência chega vinda do primeiro-ministro", Monteiro classifica esse facto como "estranho". A decisão da direcção do semanário da Impresa foi a de dar tratamento jornalístico àquele material, "se eles [o gabinete de Sócrates] assumissem que a fonte era uma fonte próxima [do gabinete]". "Isso está fora de causa", terá sido a resposta do outro lado, segundo Henrique Monteiro. "Às sete e meia da tarde, esta história ficou resolvida. Dissemos, 'nessas condições, não publicamos'", recorda o antigo director do Expresso, detalhando que isso sucedeu numa quinta-feira.

Na manhã seguinte, uma sexta-feira, 18 de Setembro de 2009, os tais documentos foram manchete no DN – "acabou por sair no Diário de Notícias como uma investigação do Diário de Notícias", salientou Monteiro. "Isto também dá um bocado o retrato do que é a imprensa portuguesa", sublinha agora, quase nove anos depois desse episódio. "Dá um bocado um retrato da independência de algumas pessoas e de alguns jornais", insistiu, acrescentando que a entrega daquela documentação interna do PÚBLICO a outros jornais "era obviamente uma tentativa de queimar o PÚBLICO" e também os jornalistas envolvidos na troca de correspondência. "Eu lembro-me de dizer '[n]esta notícia é mais interessante perceber como é que há uma violação de correspondência'", rematou. 

Reagindo a estas informações, José Manuel Fernandes disse que "ainda hoje" não sabe como é que aquela correspondência saiu do jornal. Lembrou outros casos em que comunicações de jornalistas do PÚBLICO foram violadas – aludindo ao caso que envolveu o ex-espião Jorge Silva Carvalho, condenado em tribunal por passar informação confidencial à Ongoing, que tinha o Diário Económico e entretanto faliu, e por mandar espiar a facturação detalhada de um jornalista da secção de Política do PÚBLICO.

Sobre a origem de a cópia dos mails internos ter sido o gabinete do então primeiro-ministro José Sócrates, José Manuel Fernandes salientou que essa informação era, para ele, uma novidade. "Devo dizer uma coisa. O Henrique nunca me tinha dito que tinha vindo do gabinete do primeiro-ministro. Sabia que vinha daquele lado, mas que vinha directamente daí, eu não sabia."  

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