Mais de 136 mil crianças e jovens sem médico de família atribuído

Desde 1 de Janeiro até ao início de Março deste ano que perto de mil recém-nascidos também estavam sem médico de família atribuído, apesar da lei que estipula que os bebés devem ser inscritos nos centros de saúde à nascença.

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Os Aces dizem que mesmos sem médicos de família, o acesso dos bebés a cuidados de saúde está garantido DANIEL ROCHA
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REUTERS/Michaela Rehle

Há mais de 136 mil crianças e jovens com menos de 18 anos sem médico de família atribuído. E desde 1 de Janeiro até ao início de Março deste ano que perto de mil recém-nascidos também estavam nesta situação, apesar de desde Setembro de 2016 estar em vigor o projecto Nascer Utente, que estabelece que a todos os bebés é atribuído um médico de família à nascença. Os centros de saúde dizem que precisam de mais 403 clínicos para garantir cobertura de toda a população.

O levantamento resulta das perguntas enviadas no início de Março pelo Bloco de Esquerda aos 55 agrupamentos de centros de saúde (Aces) do país: “quantas crianças recém-nascidas, desde 1 de Janeiro de 2018, não têm médico de família atribuído neste Aces?” e “quantas crianças em idade pediátrica não têm médico de família atribuído neste Aces?”.

Responderam 47 Aces. Resultado? Desde 1 de Janeiro que existem 968 recém-nascidos sem médico atribuído. Já no que diz respeito a crianças e jovens em idade pediátrica, o número ascende a 136 mil. Esta é a segunda vez que os bloquistas querem saber se a lei de Setembro de 2016 está a ser cumprida e qual o universo de crianças e jovens impossibilitados de ter um acompanhamento regular nos cuidados de saúde primários.

A primeira foi em Maio do ano passado, quando perguntaram aos centros de saúde quantos recém-nascidos não tinham, desde Setembro de 2016, médico atribuído, repetindo a questão para as crianças até aos 18 anos. Nessa altura havia 4098 bebés e 108 mil crianças nesta situação.

“Os números resultantes das perguntas de 2017 eram claramente preocupantes. Houve uma evolução, mas a lei continua longe de ser cumprida. Temos quase mil recém-nascidos sem médico de família atribuído e houve uma evolução negativa quando olhamos na idade pediátrica. É preciso encontrar uma solução, porque nestas idades é particularmente importante, sobretudo nos primeiros anos de vida, haver um acompanhamento mais regular e uma maior vigilância. O que nos preocupa é que, não estando atribuído um médico a estes recém-nascidos, crianças e jovens, esta vigilância esteja a ser prejudicada”, diz ao PÚBLICO o deputado do BE, Moisés Ferreira.

Lei em vigor desde Setembro 2016

A lei que criou o projecto Nascer Utente é de 2015, na altura com o PSD e o CDS no Governo, mas só foi regulamentada e entrou em vigor em Setembro de 2016 com o PS já no executivo. O despacho que estipula as regras é muito claro: “a inscrição das crianças no âmbito do Projecto Nascer Utente é efectuada de forma automática pela instituição com bloco de partos, na lista de utentes do médico de família da mãe e/ou pai, prevalecendo a da mãe, no caso dos pais se encontrarem inscritos em listas diferentes.”

Acrescenta ainda que nos casos em que nem o pai nem a mãe tenham médico de família atribuído, a maternidade “deve comunicar” o nascimento “ao coordenador da unidade funcional [Unidade de Saúde Familiar (USF) ou Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP)] mais próxima da residência da criança, o qual deve proceder à inscrição da mesma na lista de utentes de um médico de família”.

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“O Governo não pode ficar só por anunciar legislação sem se preocupar que ela seja cumprida. Tem de fazer cumprir a lei para os recém-nascidos e tem de fazer mais para contratar médicos de família, garantindo que os mais novos e os mais idosos, pela carga de doença, têm prioridade. Infelizmente, o Governo parece ficar mais pelos anúncios, não vai ver o que está a ser cumprido no terreno e no último ano e meio tem contribuído negativamente para a não resolução do problema com atrasos nos concursos para a colocação de médicos de família”, aponta Moisés Ferreira, referindo que o BE continuará a fiscalizar a aplicação da lei e a repetir as perguntas junto dos centros de saúde.

Nas respostas enviadas ao BE, muitos Aces explicam que mesmos sem médicos de família atribuídos, os recém-nascidos que procuram os serviços são seguidos na consulta de vigilância em saúde infantil e que o acesso aos cuidados de saúde não está comprometido. Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Médicos de Família, salienta que além de garantido o atendimento em situações de doença aguda, “devia estar a ser garantida a vigilância que fica perdida sem um médico de família atribuído”.

O clínico salienta que os dois primeiros anos de vida da criança, a consulta dos 5/6 anos e a dos 12 anos são fundamentais e que devia ser encontrada uma solução para que a lei seja cumprida em relação aos recém-nascidos e para que a idade pediátrica seja uma prioridade.

De acordo com os dados do Portal do Serviço Nacional de Saúde, a 31 de Janeiro deste ano havia 723 mil utentes sem médico de família. A região com maior défice era de Lisboa e Vale do Tejo, com 533 mil utentes nestas condições. Rui Nogueira destaca o facto de entre os 17 Aces com mais recém-nascidos sem médico atribuído estarem todos os que fazem parte desta região.

“É uma expressão claríssima da falta de médicos. Isto significa que 86% dos recém-nascidos sem médicos estão nesta região, valor sobreponível ao da idade pediátrica (83,5%). É preciso avançar com medidas estratégicas para a contratação de médicos nesta região, porque apesar de estarmos próximos de ter um excedente de médicos de família no país, aqui vamos continuar a ter um problema”, afirma.

403 médicos em falta

“A Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, muito embora se depare com uma carência de médicos especialistas na área de medicina geral e familiar, tem envidado esforços no sentido de garantir a acessibilidade a grávidas, recém-nascidos, crianças e jovens aos cuidados de saúde”, explicam todos os Aces que pertencem a esta região nas respostas enviadas ao BE.

O partido quis saber também quantos médicos cada Aces estima serem necessários para dar cobertura a toda a população que têm inscrita. A soma de todas as respostas aponta para uma necessidade de mais 403 médicos de família. Moisés Ferreira e Rui Nogueira lembram os atrasos no lançamento dos concursos para colocação dos mais de 70 jovens clínicos que terminaram a formação da especialidade em Outubro do ano passado e que ainda não foram colocados.

“Neste momento estamos a aguardar a abertura do concurso para os médicos que terminaram agora (30 de Abril) a especialidade. São 334 que deverão ter as notas homologadas por estes dias para que se possa dar início ao processo”, afirma Rui Nogueira, acrescentando que é preciso ser célere no processo de forma a ajudar a diminuir o número de utentes sem médico. Já neste ano o Parlamento aprovou dois projectos de resolução que recomendam a abertura de concurso em 30 dias após a conclusão da especialidade.

O PÚBLICO questionou o Ministério da Saúde, mas não obteve resposta.

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