Celeste Rodrigues, uma bênção do fado

Ver e ouvir Celeste Rodrigues é olhar o presente de uma mulher que veio ao mundo para cantar e a cantar continua, com serenidade e lucidez.

Não foi há muito tempo e já foi há muito tempo. A poucos dias do Natal de 2010, na noite de 21 de Dezembro, Celeste Rodrigues subia ao palco do São Luiz para celebrar com amigos os seus 65 anos de carreira no canto e no fado. Não foi um sinal de adeus, pelo contrário. Nesse mesmo ano já andava ela envolvida noutras experiências musicais, integrando, ao lado de Tim, Vitorino, Rui Veloso e Mário Laginha, o grupo Companheiros de Aventura. E assim continuou, sem deixar de cantar e sem nunca deixar o fado. Até hoje. Sempre com uma sobriedade e um bom gosto assinaláveis, sem espalhafato e por amor à arte, como se comprova pelas suas participações em concertos alheios, como convidada, ou nas noites das casas de fados.

Pois esta sexta-feira volta a ser protagonista de um concerto numa sala lisboeta, o Tivoli BBVA (às 21h30), para mais “uma reunião de amigos, na plateia e no palco” – são palavras dela num encontro com a imprensa, em Abril, citadas por Maria João Caetano no Diário de Notícias. Mas não se julgue que é por falsa modéstia que Celeste Rodrigues relativiza o que nela parece ser único; não apenas a longevidade no activo (73 anos de carreira aos 95 de idade, marco que nenhum outro fadista atingiu) como a forma de estar, isto num meio propício ao surgimento de novas estrelas ou vedetas. Em 2014, numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, no PÚBLICO, disse Celeste: “Fujo às entrevistas. Fujo. Deixem-me andar cá a cantar as minhas cantiguinhas, discreta. Por vezes não se aguenta o sucesso. E as pessoas mudam. E eu não queria nada mudar.” Teria isso a ver com o sucesso da irmã, Amália? Resposta: “Não. Ela também não ligava muito ao sucesso. Há pessoas que com um sucessozinho já se acham o máximo. Ela não. Manteve-se humilde, a gostar de coisas simples. Do seu carapau de escabeche.” E aqui Amália e Celeste, três anos mais nova do que a idolatrada irmã (que morreu em 1999), encontram uma clara afinidade: a preservação dos respectivos universos pessoais para lá da ribalta. Na citada entrevista, Anabela Mota Ribeiro pergunta-lhe se ela era muito tímida. “Ainda sou. No palco, fecho os olhos e pronto. Não quero luz na cara.” Como se o mundo cá fora não existisse, nota a entrevistadora. “Não existe. Fechar os olhos é realmente uma maneira de estar connosco.”

Mas na vida Celeste Rodrigues mantém os olhos bem abertos. Quando a massacram com o nome de Madonna, irrita-se. Maria João Caetano dá disso nota, no texto do DN: “Parece que estou a fazer propaganda de mim própria e eu não gosto disso, nunca precisei disso, não preciso de nenhuma fama, eu gosto de cantar e é isso que quero, cantar. Ela foi simpática em gostar da minha voz e é só isso.” Quando Madonna nasceu, em 1958, já Celeste cantava há muito: em 1945 foi com Amália cantar para o Brasil e em 1951 iniciou-se como cantora profissional em Lisboa, no Casablanca, ao Parque Mayer. E quando Madonna a conheceu em Lisboa, já Celeste ia com frequência aos Estados Unidos, por lá viverem as suas filhas. Voltando à entrevista no PÚBLICO: “Fiz um programa para o Ed Sullivan, cantei na televisão em Providence. Cantava nos liceus americanos. Fiz tournée na Califórnia, Massachusetts, Canadá. Telefonavam: ‘Venha’, e eu ia.” Nessa entrevista, formulava um desejo: “Nunca pensei chegar aos 91 anos. Espero chegar aos 100, já agora. E assim. Em pé, a poder falar, andar, a poder pensar, entender.” A vida tem-lhe feito a vontade, pois ainda faz tudo isso com desenvoltura. Cantar, na sua idade, é uma bênção. Uma bênção do fado. Vê-la e ouvi-la, hoje (e este concerto a isso apela, a um encontro com o seu fado), é tudo menos rememorar um passado. É olhar o presente de uma mulher que veio ao mundo para cantar e a cantar continua, com serenidade e lucidez.

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