Casa, onde quer que seja

A leitora Marta Carrilho partilha a sua experiência em Cuba.

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Há muito que estou habituada a senti-lo, mas estava errada quanto à sua origem. Não é a diferença de culturas que incentiva o desejo de rever o que nos é familiar. A saudade surge quando nos apercebemos de que os sentimentos perduram independentemente da distância, como em resposta ao sentimento de pertença a um lugar longínquo. Foi em Cuba que o compreendi.

Havana surpreendeu-me. Há muito que ouvira falar nas cores alegres, nas cubanas sentadas à beira dos passeios com vestidos e lenços na cabeça a fumar charutos, enquanto os carros antigos, com peças de diferentes modelos anteriores, passavam na rua por carrinhas a vender fruta, perto das quais crianças jogavam à bola. Mas presenciarmos o que pensávamos já conhecer tem o dom de nos proporcionar a sensação de estarmos rodeados de uma realidade nova. A cidade deixa de ser um conjunto de histórias e imagens, ganha vida.

Não pude deixar de notar o sotaque de Emílio, o simpático motorista do táxi, diferente do castelhano a que estamos habituados. Deixou-nos numa rua agitada, no meio de um trânsito confuso que lembrava as ruas da Índia, pela exuberante desorganização. Saímos perto do café El Floridita, onde posámos para uma fotografia junto a Hemingway. Depois, encontrámos uma estátua do nosso Camões. Voltámos a entrar no táxi. Era hora de almoço e os nossos amigos cubanos insistiram para que fôssemos onde nos levavam. Chegámos a um bairro longe do centro. Estacionámos ao lado de um espaço verde, mais mata do que jardim, e encaminhámo-nos para uma das moradias baixas e antigas da ruela. Passámos o portão e entrámos num átrio. Em vez de avançarmos para a porta da frente, seguimos Emílio na direcção das traseiras. Foi aí que senti a curiosidade transformar-se em fascínio.

Era um restaurante repleto de famílias, de barulho saudável. Mas não era apenas um restaurante. Na fase mais ortodoxa do regime não era permitida a iniciativa privada. Tal política levou os que desejavam ter negócios próprios a fazê-lo discretamente, dentro das próprias casas. Era comum abrir a porta a desconhecidos, os convites surgindo como forma de negócio mas também por simpatia. Enquanto esperava sentada na cadeira de verga com os braços apoiados no tampo de madeira, ouvia a banda que tocava à minha frente, abanando a cabeça ao ritmo das músicas latinas. Reparei nas fotos de Che Guevara distribuídas pelas paredes brancas e gastas. Os bancos ao lado do balcão eram ocupados por homens cubanos que bebiam e conversavam. À volta das mesas andavam galinhas, que intrigavam as crianças que as perseguiam.

O ponto forte de todas as viagens é a altura em que nos sentimos parte da cultura em que nos encontramos. Poderia ter sido só mais uma refeição. Para mim, foi o estabelecimento de uma ligação com o local. Gostava verdadeiramente daquele país, do conforto que qualquer lugar adquiria, mesmo entre paredes brancas e antigas cuja tinta deixava descoberto o cimento.

No dia seguinte esperava-me um avião. Mas não me sentia longe de casa. Deixava um lugar distante que nunca estivera tão próximo. Regressava com uma nova casa. Sabia agora como designar o que sentia. Era saudade.

Marta Carrilho

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