Envergonhados de ocasião

Quem não se lembra que uma das mais ferozes críticas à direção do PS era a da ausência de defesa do legado de José Sócrates?

"Que encontras de mais humano? Poupar a vergonha a alguém" 
Friedrich Nietzsche

Nos automóveis, temos os usados de ocasião, na política, parece que entrámos na fase dos envergonhados de ocasião. A súbita comoção de vergonha, raiva e indignação é incompatível com todo um passado de proteção e promoção das circunstâncias que conduziram alegadamente às informações e os factos tornados públicos ao longo dos últimos anos, com renovadas erupções nas últimas semanas. Senão vejamos.

Em 2011, o Partido Socialista perdeu as eleições legislativas, depois de seis anos de governação de José Sócrates e de ter negociado um programa de ajustamento económico de Portugal com a troika.

Em 2011, em eleições internas, os militantes do Partido Socialista elegeram António José Seguro para secretário-geral para um mandato em que o partido estaria na oposição com imposições políticas determinadas por um programa de austeridade que fora negociado por socialistas, com um grupo parlamentar na Assembleia da República escolhido pela anterior liderança e com diversos pontos ativos de poder real, desde logo, no município da capital, mas também num conjunto de entidades habituadas a rotinas com o poder político.

Entre 2011 e 2014, apesar das circunstâncias condicionantes negociadas por outros e das vitórias nas eleições autárquicas e nas eleições para o Parlamento Europeu, persistiu uma conveniente convergência de interesses entre José Sócrates e António Costa, direta e através dos seus apoiantes, para fragilizar uma direção política que queria fazer diferente.

Quem não se lembra que uma das mais ferozes críticas à direção do PS era a da ausência de defesa do legado de José Sócrates, enunciada diversas vezes por alguns dos envergonhados de ocasião de agora?

Quem não se lembra das inusitadas agitações parlamentares por falta de compromisso político com a história recente do PS, das convergências de ataques públicos insulares e da constante moinha de conspiração que se vivia para fragilizar e dar alento aos incomodados com a diferença e com a falta de subserviência com os poderes entranhados na sociedade portuguesa? Não vi, nem na SIC, nenhum defensor do designado “interesse público” na divulgação de matérias sob segredo de justiça sustentar que este se aplicava à divulgação das designadas escutas políticas entre José Sócrates e António Costa no âmbito da Operação Marquês. Serão certamente relevantes para aclarar a importância das convergências conspirativas, sem pingo de vergonha, no condicionamento e destruição de mandatos democráticos.

Quem não se lembra das incitações ao levantamento popular socialista quando se colocou a possibilidade de concretizar consensos com o governo PSD/CDS para suavizar a austeridade negociada e aplicada e provocar eleições antecipadas?

Pois, memória curta. Tão curta como a falta de vergonha que transforma a ética, os valores e a coerência em meras questões de geometria variável, em função das circunstâncias, dos protagonistas em causa e dos objetivos.

Redobrado rigor no exercício de funções públicas já se exigia em 2011. Reforço da separação entre a política e os negócios já se sustentava em 2011. Noção de que nem tudo tinha corrido bem entre 2005 e 2011 já se tinha quando o PS perdeu e a troika chegou.

Só que uns estavam demasiado inebriados, comprometidos e conformados para vislumbrarem que era preciso mudar de paradigma, de prática política e até de protagonistas.

Só que alguns tinham a expetativa de que um mero interlúdio político de oposição poderia ser prosseguido por outrem, para que, com os condicionamentos negociados com a troika e o adequado desgaste, no momento certo, se concretizasse o regresso ao passado. Regresso no pessoal político e regresso na prática política sintonizada com a sociedade e as suas expressões de interesses.

Sem ruturas com o passado, apesar do desgaste da governação PSD/CDS e da falta de aproveitamento do impulso que o novo quadro comunitário de apoios poderia ter dado a quem estava no poder, o que correu mal foi o PS não ganhar as eleições legislativas de 2015. Gorado o regresso ao passado, aliás, confirmado em noite eleitoral quando já havia namoro em curso com as esquerdas, triunfou o sentido de sobrevivência política, que seria incompatível com a ambição da defesa do legado de Sócrates.

Após o início da Operação Marquês, os envergonhados de ocasião colocaram-se num conveniente afastamento em relação a José Sócrates verbalizado por António Costa no “está a lutar pela sua verdade” ou na máxima “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política”. Certamente Darwin terá explicado que, na evolução das espécies, a adaptabilidade é a chave da sobrevivência, sendo a chave para a profunda ingratidão para com quem deu poder, alimentou a estratégia de reconquista interna do poder e agora fica só e abandonado. De forma cruel, será um usado de ocasião, em que até as criaturas abandonam o criador.

Envergonhados sentem-se os cidadãos pela falta de vergonha dos envergonhados de ocasião, pelas narrativas políticas para justificar o injustificável, pela promiscuidade entre a política e os negócios, pelo desmando do funcionamento do Estado de Direito Democrático e por tantas outras coisas que persistem em penalizar e a excluir sempre os mesmos e a não separar o trigo do joio.

Há quem tenha estado no sítio certo, com convicções e sem vergonhas extemporâneas, que de tanto oportunismo se constituem em falta de carácter.

O desenlace do divórcio de anos de convergência política entre José Sócrates e António Costa parece resolvido com a demissão do ex-primeiro ministro do partido, mas, para os cidadãos e para Portugal, fica por resolver a persistência dos protagonistas do passado e do presente e de uma certa forma de fazer política que pautou os interesses convergentes durante mais de uma década. Será como as manchas de bolor, pode-se limpar, mas amiúde reaparecem.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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