Precariedade no Ensino Superior: esquerda ou direita?

Hoje, mais que nunca, a Universidade portuguesa, para fazer face a constrangimentos financeiros, contrata doutorados pagando-lhes perto do salário mínimo nacional para satisfazerem necessidades permanentes de ensino.

Usualmente associamos os argumentos contra a precariedade no mercado de trabalho às correntes políticas mais à esquerda e os argumentos a favor de uma maior liberalização (ou precariedade) no mercado de trabalho aos partidos mais à direita. Uma das lições mais evidentes da Economia é que, com todos os seus defeitos, a Economia de Mercado é a forma de organização social que mais bem-estar proporcionou às populações. Um corolário desta teoria validada empiricamente é que alguma flexibilidade no mercado de trabalho (e nos outros mercados) é útil para garantir mobilidade e até permitir níveis mais baixos de desemprego. 

Mas como em tudo, há exceções. Advogamos que uma maior concorrência em setores menos especializados (como por exemplo cafetarias, padarias, lojas de vestuário) pode contribuir para baixar os preços e melhorar o bem-estar de todos, nomeadamente dos consumidores. Mas este argumento não pode ser usado em todos os setores da economia. Por exemplo, se obrigássemos as empresas farmacêuticas a operar em concorrência perfeita, hoje não teríamos grande parte dos medicamentos para muitas doenças e provavelmente não teríamos completamente controladas, em grande parte do mundo, doenças como a malária, o sarampo e até o VIH. Porquê? Porque só protegendo com algum poder de mercado estes setores económicos lhes propiciamos as condições necessárias (os lucros) para que possam passar anos e anos a fazer investigação antes de lançar um novo medicamento no mercado e recuperem desta forma todo o investimento feito.

Mas que relação tem isto com o problema da precariedade no ensino superior?

Hoje, mais que nunca, a Universidade portuguesa, para fazer face a constrangimentos financeiros, contrata doutorados pagando-lhes perto do salário mínimo nacional para satisfazerem necessidades permanentes de ensino. Ora, como se assume e se acredita que o grau de doutor é o início de uma carreira de investigação que, no ensino superior, não pode estar dissociada da educação superior, estamos perante a existência de um mercado de trabalho dual, em que co-existem os que estão dentro da carreira, razoavelmente bem pagos, muitos com contratos permanentes e na maioria dos casos sem muitas exigências de produtividade. À porta, encontram-se recém-doutorados ou pós-doutorados, com ou sem bolsa de investigação, muitas vezes contratados por prazos até um ano e com percentagens que implicam um rendimento muitas vezes 70 a 80% abaixo dos que estão dentro da carreira, sendo-lhes atribuídas tarefas da mesma responsabilidade e monta. Esta lógica desvirtua o conceito de professor convidado que é o professor que, pelo seu mérito profissional fora da academia, é contratado para proporcionar aos estudantes um contacto em áreas altamente profissionalizantes e práticas como a contabilidade, algumas áreas do direito, a medicina, sem querer ser exaustivo. Esses professores, com uma carreira não académica, vêm acrescentar à academia um saber-fazer que a mesma tem dificuldade em fornecer por si só. Do que falamos é de algo completamente diferente! É da constituição de um mercado de trabalho dual, em que se pagam salários diferentes para responsabilidades e tarefas iguais.

O que perde a Universidade com esta estratégia? Perde a capacidade de ‘explorar’ o melhor que um recém ou pós-doutorado pode dar: a sua energia, as suas ideias inovadoras, a sua criatividade no ensino e na investigação. Tal como não é possível pedir a uma empresa que invista anos e anos até conseguir um novo produto sem a remunerar por isso, também não é possível pedir a um doutorado que invista anos e energia a ser criativo e a produzir cientificamente se o remuneramos a um nível pouco superior ao do salário mínimo nacional! Por outro lado, a Universidade tem um corpo docente muito envelhecido, grande parte instalado em regime de contrato vitalício (tenure), atuando num mercado de trabalho sem mobilidade inter-institucional, muitas das vezes com um regime de avaliação muito débil que, em alguns casos, só pode envergonhar a universidade por proporcionar à quase generalidade dos seus docentes a avaliação máxima! Ora, uma avaliação que confere a todos nota máxima não é avaliação nem constitui um incentivo de melhoria, antes perpetua a dualidade existente neste mercado.

É evidente que a contratação científica poderia ajudar a resolver parte deste problema. No entanto, vê-se hoje (julgo que como nunca!) uma dissociação entre a política científica e a política das universidades. Enquanto a FCT – que rege a politica científica – dá instruções para contratar doutorados para carreira de investigação, os reitores das universidades têm evitado ou até proibido a inscrição orçamental das proporções que lhes caberiam no financiamento desses contratos. Não será assim que o país resolverá o problema da precariedade no mercado de trabalho dos docentes universitários. 

Esta é uma questão que não é de esquerda nem de direita. Se acreditamos que a Universidade (formação e investigação) podem contribuir para o futuro do país, então é este que está em causa!

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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