1.º de Maio: minutos curtos e meses longos

Talvez participe nalguma manifestação do 1.º de Maio deste ano, na expectativa de perceber aí o sinal daquilo que o 1.º de Maio, hoje, pode (deve) significar e propor.

1.º de Maio de 2018. Já lá vão 132 anos sobre o que lhe deu origem. Em 1886, em Chicago, a morte de vários trabalhadores na sequência de uma manifestação por mais vida (porque tempo é vida), reivindicando um horário de trabalho diário de oito horas, em vez das 12 e até 16 que praticavam.

E, contudo, vindo as origens do 1.º de Maio de tão longe e de há tantos anos, vem-me à ideia, associado, algo que, muito mais próximo e de não há muito tempo, chegou a mim da realidade quotidiana do trabalho.

“Nunca tive problemas com os minutos. Mas, agora, é de mais, não consigo...

Estas palavras ouvia-as, há poucos anos, a uma trabalhadora de uma fábrica de componentes electrónicos.

Dizia-as a chorar, por ter sido sujeita a um processo disciplinar (por sinal, com falhas processuais) por “falta de produtividade”, por “não aguentar a produção”, “não render” o número de peças exigido nos minutos estabelecidos pelos parâmetros de tempos e métodos estabelecidos pela empresa empregadora.

Na fábrica onde essa trabalhadora trabalhava, as funções em causa eram essencialmente repetitivas e rotineiras e várias outras trabalhadoras tinham já sido clinicamente diagnosticadas como portadoras de doença profissional de ordem músculo-esquelética.

Este exemplo, que revela da parte patronal um entendimento “quantofrénico” da competitividade, como assente na sobreintensificação do trabalho, é de há uns anos mas a sua recordação pessoal não me soa como passado, soa-me como presente, porventura, até mais sonoramente.

Vem isto a propósito da (maior) atenção que requer a qualidade do emprego quando, podendo estar objectivamente esquecida (ainda que muito lembrada na retórica política...)  sob o manto, estatisticamente brilhante, do crescimento da economia e do equilíbrio das contas públicas e, mais especificamente, da diminuição do desemprego com aumento da quantidade de emprego (como agora felizmente se verifica), se deteriora em e por baixos salários, precariedade dos vínculos laborais e sobreintensificação (em duração e ritmo) do trabalho,

Tanto mais que estes três factores (baixos salários, precariedade e sobreintensificação do trabalho), se reforçam mutuamente na diminuição da qualidade do emprego, na degradação das condições de trabalho.

Continuamos a ter dos mais baixos salários da União Europeia (um estudo recente do INE mostra que, ao mesmo tempo que a produtividade aumentou 20%, os salários dos portugueses estão ao nível de 2002). E, já se sabe, porque perante a mercearia, a luz, a renda de casa, etc., “o mês nunca mais chega ao fim”, quanto menos se ganha, mais tem que se trabalhar, “dar o litro” na expectativa de trabalho suplementar (muito dele para além dos limites legais e, até, não totalmente pago de acordo com a lei), de “prémios de produtividade”,  enfim, de complementos remuneratórios cuja instituição, muitas vezes, assenta numa perversa concepção de gestão, a de os trabalhadores ganharem menos para trabalharem mais.

Continuamos a ser dos países da União Europeia (e muito especialmente da Zona Euro) com uma das mais altas taxas de precariedade laboral, de contratos de trabalho a termo e contratos de trabalho temporário, condição que tudo e mais alguma coisa leva os trabalhadores a “aceitarem”, na mira da renovação do contrato ou, talvez, da efectivação (contrato de trabalho permanente) ou integração na empresa empregadora/utilizadora.

Esta linha de rumo do emprego, a seguir-se, é contraditória: por um lado, bem visível na claridade dos jornais e das televisões,  as estatísticas da descida do desemprego e, mesmo, do aumento da quantidade do emprego; por outro, ao mesmo tempo, no “escuro” da “caixa negra” dos locais de trabalho e coberta por esse “manto diáfano” dourado e resplandecente das estatísticas da diminuição do desemprego e aumento da quantidade do emprego, a perda de qualidade do emprego, destacando-se nesta, como sua causa, efeito e expressão, a sobreintensificação do trabalho.

Basta entrar em algumas fábricas, “grandes superfícies”, escritórios ou call centers, até em muitos departamentos da administração pública, para se perceber isso.

A sobreintensificação do trabalho reflecte-se, imediata ou diferidamente, directa ou indirectamente, não apenas na perda de saúde (se não da vida...) dos trabalhadores mas, também, nefastamente, na sua família, no apoio à educação dos filhos, na natalidade (cuja descida aí está de novo patente).

Para além disso, como determinante da (falta de) qualidade do emprego, repercute-se negativamente na sustentação da qualidade e produtividade (logo, na competitividade) da produção (bens ou serviços) das próprias organizações empregadoras (empresas e não só, incluindo a administração pública central e local).

Enfim, a perda de qualidade do emprego projecta-se, em geral, na sociedade, visto que é condição do resultado do trabalho, da sua qualidade, segurança, prontidão e até humanização (mormente, quando esse resultado do trabalho integra uma relação humana, social, por exemplo, o atendimento, nos serviços públicos e não só [1]). Ou seja, repercute-se em todos nós (como consumidores, clientes, utentes, contribuintes) e, daí, inclusive, perversamente, nos próprios trabalhadores.

Talvez participe nalguma manifestação do 1.º de Maio deste ano, honrando não apenas o que significou (e significa) o que histórica e socialmente lhe deu origem mas, também, o que significou a sua primeira manifestação livre em Portugal, em 1974, só  possível com o 25 de Abril. E, sobretudo, na expectativa de perceber aí o sinal do que é que o 1.º de Maio, hoje, pode (deve) significar e propor.

E então, certamente, pelo menos por momentos, ficarei absorto das palavras de ordem e dos discursos, pensando no que é que essas manifestações poderão mudar (ou fazer mudar) daquilo que, não manifestado, quanto a qualidade do emprego, se passa para com muita gente que trabalha: minutos curtos e meses longos.

[1] Como já aqui foi referido num anterior artigo, “Serviço Nacional de Saúde: o longo braço do trabalho”, PÚBLICO online, 13.01.2018

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