Em silêncio com Grouper

Um disco ficou incompleto devido a doença da americana Liz Harris, ou seja Grouper. Mas ficou também repleto de sugestões que nunca alcançaremos, que cada um preencherá à sua maneira. Excelente.

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Peças frágeis para piano e voz participando num fluxo sonoro que conduz à quase abstracção: Grouper

Notas de piano, uma voz, reverberação, silêncio e muita alma. É assim o novo álbum da americana Liz Harris, ou seja, Grouper. Já era assim o anterior Ruins (2014), obra admirável registada em Aljezur, litoral algarvio, por via de uma residência artística da galeria ZDB.

Na verdade, com naturais desvios, outros instrumentos e concepções, tem sido assim ao longo de uma dezena de álbuns. O que foi mudando entretanto? Dir-se-ia que Liz Harris ao longo dos anos se foi aceitando melhor, e ao mundo em redor, devolvendo-nos a solidão, os silêncios, os vazios e também ocasionais lampejos luminosos que contemplam a existência, por mais que exista dificuldade em assumi-lo, com desarmante vulnerabilidade.

Nesse sentido o novo álbum não se afasta muito de Ruins, canções para piano e voz que pareciam captar o ambiente em redor, numa combinação de notas mínimas e ruídos discretos que davam origem a uma tranquilidade emocionante.  Se Dragging A Dead Deer Up A Hill (2008) a colocou no mapa ou The Man Who Died in his Boat (2013) a mostrava capaz de trabalhar a matéria dos desejos como poucos, em Ruins procurava discretamente um lugar que fosse só seu. Talvez de forma surpreendente, pelo ar fora de tempo, transformou-se no seu disco mais afirmativo junto do público. E o novo álbum traça o mesmo itinerário.

Se o anterior foi registado em Aljezur, este transporta-nos para o Wyoming. Mais uma vez somos conduzidos para uma casa com ambiente de igreja, com ecos e reverberações, figuras sonoras extraídas do piano, gestos lentos, muito espaço em redor e uma voz que rumina mais do que canta, com esse todo criando uma atmosfera quase litúrgica, emanando uma intimidade raras, em canções esqueléticas que transmitem melancolia e solenidade.

Tal como no anterior álbum, aqui também funciona a sugestão. Há dois anos, em entrevista, Liz Harris, dizia-nos que esse anterior registo tanto era marcado por momentos interiores (dissolução de relações afectivas ou descrença no amor romantizado) como exteriores (crise financeira global e o mundo em convulsão), como se estas fizessem eco nas suas razões mais intimas, ou vice-versa. Aqui essa ideia de perda volta a pairar, mas a ambiência é ainda mais evanescente, como se estas peças frágeis para piano e voz participassem num fluxo sonoro que conduz à quase abstracção.

É uma obra poética concisa, cuja gravação terá sido abruptamente interrompida por doença inesperada de Liz Harris, que resolveu depois não acrescentar mais nada ao que já havia sido registado. E o álbum ficou assim, incompleto, imperfeito, repleto de sugestões que nunca alcançaremos, momentos de vida suspensos numa história maior que cada um preencherá à sua maneira. Excelente.

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