De Aljezur até Lisboa, uma viagem de quatro anos

Em 2011 Liz Harris (Grouper) gravou canções, isolada numa casa perto de Aljezur. Dariam origem a Ruins, um dos acontecimentos de 2014 – foi o álbum do ano para o Ípsilon. No domingo, em Lisboa, completa-se um círculo e a americana vem agradecer a quem acreditou nela.

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A americana Liz Harris, Grouper, procurou o silêncio em Aljezur, no litoral algarvio. Em 2014 lançou um álbum a partir das gravações efectuadas naquele lugar, naquele tempo: Ruins

Habitamos cada vez mais espaços confusos, povoados por música, pessoas e imagens sempre em movimento. A omnipresença da música ou das televisões nos espaços públicos, por exemplo, parece funcionar como antídoto ilusório para não lidarmos com o silêncio, personificando o medo da solidão ou de pensar. A americana Liz Harris, mais conhecida por Grouper, é um caso raro.

Em 2011 procurou o silêncio, a solidão, um lugar para se repensar. Foi em Aljezur, no litoral algarvio, que tal viria a acontecer, no contexto de uma residência artística facultada pela galeria ZDB, em Lisboa, resultante da amizade com o programador musical Sérgio Hydalgo. O ano passado lançou um álbum a partir das gravações efectuadas naquele lugar, naquele tempo. Chamou-lhe Ruins. O álbum obteve críticas elogiosas por todo o mundo e figurou nas listas dos melhores do ano de muitas publicações - para o Ípsilon foi o álbum de 2014. Mas Liz manteve-se discreta. As recordações desse tempo mexiam com ela. Não é muito de entrevistas. E concertos com regularidade também não.

Agora vem apresentar esse disco ao Teatro Maria Matos, em Lisboa, e um círculo parece completar-se. É como se regressasse a Aljezur, quando ali permaneceu há anos, criando canções para piano e voz que captam o ambiente em redor, combinação de notas mínimas e ruídos discretos que originam uma tranquilidade emocionante.

“Aljezur embalou as emoções que inspiraram a música a crescer e o meio ambiente teve muito a ver com isso”, diz-nos ela, puxando pela sua memória do lugar. “Há qualquer coisa de selvagem por ali – o mar, a forma como a água atinge a costa, fazendo com que as falésias a corroam dramaticamente”, afirma, acrescentando que a sua relação com o mar foi sempre intensa: “A água tem essa faculdade de retirar coisas de mim, tal como as imagens de decadência, que é qualquer coisa que está presente à volta de Aljezur, na forma dos edifícios degradados onde crescem flores silvestres e videiras.”  

Durante dez anos e outros tantos álbuns, ela não parou, entre gravações, projectos, concertos e viagens. Dessa feita sentiu que tinha de deter-se. Por razões internas. Dissolução de relações afectivas, descrença no amor romantizado, vontade de estar só. Mas também motivos externos, com a crise financeira global e o mundo em convulsão, fazendo eco nas suas razões íntimas.

“Essa residência artística em Portugal foi talvez o primeiro espaço que tive para parar num outro lugar que não em casa, sozinha, tentando pensar a minha vida a partir de uma nova perspectiva, interrogando onde estava, de onde vinha, e o que estava a deixar para trás”, afirma ela.

Ao contrário de outros discos da sua autoria, esculpidos com guitarra e reverberações, neste abandonou-se às canções para piano, voz e sons concretos do meio ambiente envolvente. Quase que a podemos visualizar sonoramente, durante o dia, passeando entre a casa e a praia, e à noite, tocando piano na sala, com o tempo de silêncio entre as notas a ser apenas interrompido pelo rumor exterior provocado pelas rãs.  

Mas apesar da situação pouco usual, ela diz que a forma como abordou os temas não foi assim tão diferente de outros discos. “Gravar aquelas canções foi qualquer coisa de muito natural, não ensaiada, pouco consciente. Utilizei aliás o mesmo equipamento que já havia usado na gravação do álbum Dragging a Dead Deer. É fácil de configurar o que é óptimo para alguém que trabalha muito a sua energia musical por impulso. Se sentir uma canção e a deixar passar não é certo que tente regressar a ela.”

Existe sentido da experiência, generosidade e beleza na música de Grouper. Em algumas faixas pressente-se dor e tristeza, mas também quietude e aceitação. Opostos que apenas aparentemente o são. Pelo menos para ela.

“Esses contrastes acabam por ser reflexos de mim mesma, e de todas as pessoas, no fim de contas. A representação honesta da vida de quem quer que seja, a partir dos seus pensamentos mais profundos, contempla sempre demónios e satisfação, apesar de ser difícil de aceitar essa visão dúplice. Sinto-me confortável com isso, embora como pessoa sensível, seja também atingida pela dor. Todos nós a sentimos. Ajuda, se a aceitarmos. E a música ajuda-me a relativiza-la.”

Se existem discos que apetece ouvir sozinho, Ruins, é um desses objectos. Durante três anos ela teve reticências em partilhar a música que havia feito naquele lugar. Entende-se o desconforto. A solidão que emana é quase tangível. E no entanto não custa acreditar que, ao vivo, perante uma plateia, será um ritual especial. Em Lisboa, para além de guitarra, fitas pré-gravas e voz, haverá um piano, algo que constituiu uma novidade na presente digressão e que foi um desejo expresso da sua parte.

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Independentemente desse facto, quem já a viu ao vivo – a sua primeira vez em Portugal foi em 2007, tendo regressado depois por mais de uma vez, com a Galeria ZDB no horizonte – sabe que é capaz de criar um ambiente quase litúrgico, de um intimismo raros, através das suas canções ambientais sempre reveladoras.  

Em palco é uma figura enigmática, rodeada de instrumentos e electrónicas, movendo-se de forma meticulosa, parecendo querer transportar a assistência para uma sessão de meditação através de um som espaçoso e melódico. O resultado é uma muralha sonora sonhadora, que parece flutuar eternamente pelo espaço.

Dir-se-ia que o álbum do ano passado a lançou definitivamente. É verdade que o seu longa-duração de 2008, Dragging A Dead Deer Up A Hill, a haviam colocado no mapa de artistas a acompanhar e que em 2013, com The Man Who Died In His Boat, trabalhava a matéria dos desejos como poucas. Mas Ruins transformou-se, um pouco inesperadamente, no seu registo mais celebrado.

Não é um disco que respire o ar dos tempos, procurando discretamente um lugar só seu. Talvez nesta época de excesso de signos tenha sido esse, afinal, o segredo.

“Fico sempre surpresa com a forma como reagem aos meus discos e este não foi diferente”, afirma. “Sinto muitas vezes, com vários níveis de desconforto, que estou sozinha e sem mapa. Nesse sentido, qualquer tipo de resposta ao que faço é uma oferenda. Tenho que agradecer ao Sérgio [Hydalgo] e à ZDB. Parte do sucesso deste disco é deles. Fizeram o projecto acontecer no meio de fortes contrariedades e nunca desistiram. Tiveram uma grande confiança em mim. Sinto-me com sorte por haver pessoas que acreditam no que faço. Obrigado, por isso.”

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