Um artigo para a posteridade

É óbvio que pelo menos até ao final da presente legislatura tenderá a prevalecer a ilusão de que a actual maioria parlamentar é estável, confiável e potencialmente duradoura.

Pode uma esquerda radicalmente europeísta e moderada, para usar as palavras do ministro dos Negócios Estrangeiros e actual número dois do Governo, construir um projecto político a prazo assente na ideia de uma coligação parlamentar com uma outra esquerda radicalmente antieuropeísta e imoderada? A resposta, se o pensamento e as palavras ainda tiverem sentido na nossa vida política só pode ser uma: não. O artigo que Augusto Santos Silva publicou na semana passada neste jornal não pode nem deve passar despercebido, como se constituísse apenas uma contribuição avulsa para o debate que normalmente antecede a realização de um congresso partidário. O texto em apreço salienta-se pela sua extraordinária qualidade enquanto peça de reflexão política e pela singularidade que exibe face ao contexto discursivo dominante no campo da esquerda democrática.

Santos Silva, contrariando deliberadamente a vulgata hoje prevalecente, começa por contestar a ideia de que na origem da presente crise da esquerda democrática europeia esteja a tentativa de reformulação doutrinária e programática encetada no seio desta família política em finais do século XX, que teve na famosa “terceira via” britânica a sua expressão mais emblemática e polémica. Na sua perspectiva, o esforço teórico então empreendido visava encontrar respostas adequadas às novas questões suscitadas pelas revoluções tecnológicas em curso e pela emergência do fenómeno da globalização.

Esta leitura da história recente contrasta abertamente com as posições assumidas não só por toda a extrema-esquerda europeia, de matriz antiliberal, anticapitalista, anti-atlantista e antieuropeia, como também por alguns sectores menos extremistas que aderiram, contudo, a uma interpretação negativa de tudo quanto se levou a cabo durante esse período histórico. É hoje difícil, aliás, encontrar em toda a Europa quem se disponha a adoptar o posicionamento prosseguido por Augusto Santos Silva, coisa que ele seguramente não ignora.

Quando afirma que a esquerda democrática tem a obrigação de “combater o populismo, o nacionalismo, o iliberalismo e o proteccionismo, quer nos outros, quer na própria família”, o Ministro dos Negócios Estrangeiros não esconde a perturbação que lhe causa o comportamento exibido por alguns sectores do seu próprio espaço político. Reconheçamos que a preocupação tem todo o sentido e não poderia ser enunciada de modo mais contundente.

Por último, Santos Silva reclama um reforço da vinculação de Portugal à União Europeia, o que só pode ser entendido como um expressivo sinal de divergência face a todos quantos (e são muitos na esquerda portuguesa) se situam entre uma atitude de rejeição ostensiva do projecto europeu e uma outra caracterizada por um crescente cepticismo em relação ao mesmo.

Perante tais afirmações plasmadas num artigo de opinião escrito pelo número dois do Governo, teremos de concluir uma de duas coisas: ou o cinismo já adquiriu tal magnitude na nossa vida pública a ponto de anular o sentido, o valor e a repercussão prática do pensamento e do discurso, ou, ao mais alto nível da actual direcção do PS, já se percebeu que a presente maioria parlamentar teve a utilidade momentânea de permitir o surgimento e manutenção de um governo socialista na actual Legislatura, mas não dispõe de condições de coerência e consistência para se projectar num tempo mais duradouro. Admitindo a segunda hipótese, até por ser moralmente superior, deparar-nos-emos a curto prazo com um interessante confronto no interior do Partido Socialista devido à consabida existência de uma expressiva corrente de opinião que preconiza a aliança com o Partido Comunista e com o Bloco de Esquerda como uma opção estratégica prioritária. 

Não terá sido por acaso, de resto, que João Galamba, o actual porta-voz do partido se apressou a contestar o texto de Santos Silva, identificando-o com uma posição ultraminoritária no seio do PS. A questão, porém, é que estamos a falar do número dois do Governo e de um homem a quem é reconhecida uma especial proximidade a António Costa. Acresce que, se virmos bem, nada do que Santos Silva escreveu conflitua com tudo aquilo que o primeiro-ministro tem vindo a afirmar no plano europeu e a consagrar no domínio das políticas económica e orçamental. Santos Silva, provavelmente o ministro dotado de maior cultura política do presente executivo, limitou-se, no fundo, a teorizar uma prática governativa que encontra na figura de Mário Centeno a sua plena materialização.

Perante tudo isto, o Bloco e o PCP, esses sim acorrentados à prática de um cinismo político que os deve exasperar intimamente, vêem-se submetidos a uma subalternização que o tempo tornará cada vez mais evidente. Ao fim e ao cabo, pouco contam no que é verdadeiramente relevante na governação do país. 

É óbvio que pelo menos até ao final da presente legislatura tenderá a prevalecer a ilusão de que a actual maioria parlamentar é estável, confiável e potencialmente duradoura. Mas não é. Só poderia eventualmente sê-lo se estivéssemos dispostos a pagar um elevado preço pela manutenção dessa esgotada miragem: o preço do imobilismo. Não creio que o PS possa seguir por esse caminho. Se o fez até agora foi por não ter ganho as últimas eleições legislativas. Uma vez ganhas as próximas, como tudo indica, outro será o trajecto. Podemos começar a antecipá-lo relendo as palavras de um homem que não costuma escrever em vão: precisamente o hoje muito citado ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.

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