Meio milénio de histórias contadas numa viagem pela talha dourada

Através de três percursos, Francisco Carneiro Fernandes, estudioso do património da cidade, mostra a talha criada desde o final do século XVI, em estilo maneirista, até à talha do século passado, já esculpida em granito, em 26 imóveis religiosos.

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Pormenor da talha existente na Igreja de S. Domingos, que é monumento nacional
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Tal como no resto do país, a talha revestiu os interiores de muitas das igrejas e capelas de Viana do Castelo no último meio milénio, sobretudo até ao final do século XVIII, distinguindo-se pelos retábulos-mor de madeira revestidos a dourado, mas ornamentando também os púlpitos e os cadeirais de então. Essa viagem de quase cinco séculos está agora descrita num roteiro apresentado nesta quarta-feira, Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, e que, segundo o autor, Francisco Carneiro Fernandes, se estende do “retábulo de muito valor do maneirismo quinhentista”, acompanhado de uma “pintura muito antiga de origem flamenga”, numa capela da Sé de Viana, até ao trabalho escultórico em pedra que se encontra no interior do Santuário de Santa Luzia, já do século XX, no monte sobranceiro à cidade.

“É uma viagem de cerca de meio milénio que procura sensibilizar para o valor desta arte tão portuguesa, tão criativa, que, por vezes, não é devidamente apreciada ou que, por haver muito, é banalizada”, diz ao PÚBLICO o estudioso do património artístico de Viana, sobre o qual já publicou mais obras.

Geógrafo de formação, Francisco Carneiro Fernandes estruturou o roteiro da talha dourada em três percursos, com descrições em português e inglês, à semelhança do roteiro dos azulejos, publicado no ano passado: dois deles no centro histórico e outro no restante tecido urbano da cidade.

Uma das zonas do casco histórico corresponde à antiga freguesia de Santa Maria Maior, onde se encontram a Igreja das Almas, construída no século XIII e posteriormente ampliada, a Igreja da Misericórdia, erigida no século XVI com influências do Norte da Europa, e a Sé, construída na primeira metade do século XV, com o seu retábulo do maneirismo quinhentista.

Outro dos destaques do roteiro, mencionou Francisco Carneiro Fernandes, é a Igreja de S. Domingos, já no outro percurso do centro histórico, na antiga freguesia de Monserrate. Monumento nacional desde 1910, a igreja construída no século XVI engloba o retábulo de Nossa Senhora dos Mares, do maneirismo seiscentista, “imponente e em folha de prata dourada”, o retábulo-mor, do barroco nacional, estilo que vigorou no fim do século XVII e no início do século XVIII, e o retábulo da Nossa Senhora do Rosário, do século XVIII.

Da autoria de André Soares, o arquitecto de vários edifícios barrocos e rococó no Minho, sobretudo em Braga, cidade natal, esse retábulo rococó, diz Carneiro Fernandes, foi considerado “como o mais imponente de Portugal e um dos melhores de toda a Europa” pelo investigador norte-americano Robert Smith, que publicou, em 1963, a obra A Talha em Portugal.

Fora do centro histórico, o autor destaca o retábulo-mor do barroco nacional da Igreja do Carmo, edificada no século XVII, e o retábulo neoclássico da Capela do Espírito Santo, ao mesmo tempo “rico e sóbrio”. Além do património existente na cidade, o autor pretende, até ao final do ano, dar a conhecer o panorama da talha religiosa no resto do concelho, que tem alguns Imóveis de Interesse Público como o Convento de S. João das Cabanas, em Afife, ou a Igreja Paroquial de Geraz do Lima.

Sensibilizar para a conservação

Além de dar a conhecer a talha de Viana do Castelo, Francisco Carneiro Fernandes deseja igualmente que o roteiro sensibilize as pessoas para a necessidade de preservação desse “património multissecular”, com alguns casos em “grave deterioração”. Um dos exemplos deste cenário é, a seu ver, a Igreja de Santo António dos Capuchos, da qual só resta o retábulo-mor, um dos principais exemplares de barroco joanino na cidade, após a restante talha ter sido desmontada. “Ela foi recuperada há pouco no exterior, porque ameaçava ruir, mas, ao nível do interior e das obras de arte, está tudo na mesma”, disse.

Encerrado ao público, o edifício precisa de “outro tipo de conservação” após ter sido alvo de “uma intervenção muito forte ao nível da cobertura”, reconheceu a vereadora municipal com os pelouros da Cultura e do Turismo. Maria José Guerreiro lembrou, porém, que a Câmara só pode ir mais longe na recuperação com a autorização da entidade proprietária, e considerou que o roteiro pode ser um instrumento de apelo à conservação de um património que faz parte da identidade da região. “Chama-nos a atenção para espaços que, por vezes, nos passam um pouco despercebidos e torna-nos mais sensíveis para a relevância do património, quer material, quer imaterial”, observou.

Para a vereadora, o roteiro pode ainda “constituir um produto para os operadores turísticos organizarem visitas” direccionadas para a divulgação deste património, com potencial para atrair mais turistas a Viana e levá-los a ficar na cidade “dois dias em vez de um”, algo, a seu ver, “importante do ponto de vista do tecido económico”.

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