No teatro da Penha de França, a incerteza é a peça em cena

Junta de freguesia e encenador do teatro comunitário desentenderam-se sobre condições laborais. Os alunos estão parados há quatro meses, mas a autarquia garante que quer dar "um novo impulso" ao projecto.

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Peça "As criadas, que não são do Genet", levada à cena em 2011, com base num texto de Jorge Silva Melo DR

Há uns anos, Ana Maria Fernandes resolveu desafiar-se. “O ser humano tem de se desenvolver em termos plásticos e artísticos”, considera esta professora, que procurou no palco os instrumentos para a evolução. “Achei que o teatro me iria dar as condições para desenvolver essas aptidões.” Durante algum tempo andou por outro lado, mas depois decidiu entrar para as Oficinas de Teatro da Penha de França, já lá vão quatro anos.

Nas Oficinas da Penha de França faz-se teatro comunitário. Às terças-feiras à noite, pessoas de diferentes idades, profissões e nacionalidades vestem outras vidas por um par de horas, preparando as peças que mais tarde toda a população pode ver. “Tudo isto passa por um processo muito demorado”, explica Ana Maria Fernandes. Há a leitura e selecção de textos, a análise das condições para a encenação, a distribuição de papéis entre os cerca de 20 actores amadores, fora tudo o mais que implica montar uma peça de teatro. “É um trabalho mesmo de grupo, de partilha, um trabalho sério, de desenvolvimento pessoal e social.”

O trabalho está parado desde o início do ano, momento em que os participantes receberam um mail da Junta de Freguesia da Penha de França a comunicar-lhes que as Oficinas “encontram-se suspensas até novas indicações”. Quatro meses depois, ainda não houve novas indicações e não há previsão de quando isso possa acontecer.

A suspensão deve-se a um desentendimento entre a junta e o encenador das Oficinas até Janeiro, João Ferrador, a quem foram propostas novas condições de trabalho que considerou inaceitáveis. “No início de Novembro, fui contactado por um chefe de serviço a dizer que ia passar a ter as mesmas condições dos restantes professores da junta, ou seja, que ia receber 75% do que pagam os alunos”, explica João Ferrador. Segundo as suas contas, com as novas regras perderia 70% do rendimento mensal. Não aceitou. “Isto não são umas aulinhas de zumba ou aeróbica. Para escolher um texto tenho de ler 50, há ensaios, horas e horas de trabalho”, continua o encenador.

A junta, liderada pela socialista Sofia Dias, confirma a proposta. “As contrapartidas recebidas pelas aulas dadas num espaço da junta eram manifestamente superiores às dos outros prestadores de serviços que se encontram em situação análoga, o que foi considerado inaceitável”, disse uma assessora de imprensa da autarquia. E acrescentou que “jamais existiu qualquer vínculo laboral entre a Junta de Freguesia da Penha de França e o sr. João Ferrador.” Segundo esta fonte oficial, “a freguesia apenas disponibilizou as suas instalações para que o sr. João Ferrador, profissional liberal, exercesse, com total independência e autonomia, a sua actividade junto dos participantes inscritos.”

O encenador contesta esta versão, alegando que recebeu 700 euros mensais da junta, a recibos verdes, durante os últimos 15 anos. Por isso, suspeita que há outros motivos para a suspensão das Oficinas. “Fizeram de mim o bode expiatório, mas isto não foi por questões financeiras. Eles nunca valorizaram esta actividade”, acusa João Ferrador. Uma acusação desmentida pela junta: “A junta de freguesia está a trabalhar para dar um novo impulso a este projecto de todos e disponibilizar aos alunos a oferta das Oficinas de Teatro que merecem.”

Alunos defendem Oficinas

Os alunos, entretanto, cansaram-se de esperar e mobilizaram-se em defesa das Oficinas e de João Ferrador. Lançaram uma petição, foram à assembleia de freguesia pedir esclarecimentos, querem que o assunto seja tratado na assembleia municipal e tenha atenção da vereadora da Cultura da câmara.

“Nada nos foi dito. Não nos parece justo nem sequer honesto”, comenta Natalina Rosa, uma das três pessoas com deficiência visual que integram o grupo de participantes. Para ela, a suspensão das Oficinas constitui “uma grande perda pessoal”, porque “era bom, era intenso, dava realização pessoal”. Sem esta actividade, diz, “fico mais só, menos capaz”. Mas a perda é também para a freguesia, até porque “não há grandes actividades culturais” na zona.

Outro aluno, João Carlos Alexandre, afirma que a junta já há muito tempo vem demonstrando desinteresse no teatro comunitário. E dá como exemplo a última peça levada a cena, em Dezembro, que decorreu “sem qualquer apoio”. João Carlos sentiu-se “bastante irritado” com a suspensão do projecto. “Ainda me irritou mais ver na revista da junta de Janeiro as fotografias da peça. É certo que foi nas instalações da junta, mas o interesse que a junta teve naquele evento foi zero, o esforço que fez foi zero”, acusa.

João Ferrador está agora a ponderar como agir de seguida, porque considera que a junta lidou com ele de má-fé. “As Oficinas já são uma marca, já fizeram tanto por tanta gente. É tão difícil pôr um projecto destes de pé e desfazê-lo é tão fácil”, desabafa.

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