O Antropocenteno

Terão os portugueses, ou pelo menos aqueles que pertencem à maioria parlamentar de esquerda, sido transformados numa nova espécie de primata hominídeo, o homo centenicus?

Um espectro ronda a política portuguesa: seremos todos Centeno? Terão os portugueses, ou pelo menos aqueles que pertencem à maioria parlamentar de esquerda, sido transformados numa nova espécie de primata hominídeo, o homo centenicus? Teremos entrado numa nova era, a que poderemos chamar de “antropocenteno”?

Ora aí está uma pergunta a precisar de uma resposta multidimensional.

A primeira dimensão é uma dimensão pessoalizada: há quem ache que o debate sobre o défice orçamental português se faz hoje porque Centeno quer agradar a Bruxelas, porque deseja fazer um brilharete no eurogrupo ou preparar-se para uma carreira futura como comissário europeu. Esta não é uma dimensão que enriqueça o debate. Pelo contrário, trata-se daquele tipo de argumentação de quem não admite reconhecer que quem pensa diferente de mim o faz porque tem ideias diferentes das minhas, mas antes teima em sugerir que quem pensa diferente de mim só pensa diferente de mim porque certamente esconde algum interesse inconfessável por detrás. A pergunta que há a fazer é: Centeno acha hoje uma coisa diferente do que achava antes? Se mudou de ideias, poderia especular-se o porquê da mudança. Mas se continua a achar o mesmo, cabe-nos somente discordar sem inferir que a discordância se deve a um qualquer desígnio de carreira da pessoa com quem discordamos.

Essa distinção salutar permite-nos entrar numa segunda dimensão do debate que é bem mais interessante: a dimensão económica. É bom lembrar que o debate económico que se reavivou na Europa desde o início da crise financeira não foi um debate entre aqueles que acham que os défices são sempre coisas más e os que acham que os défices são sempre coisas boas. Isso é uma caricatura. O verdadeiro debate foi, e é ainda, entre aqueles que acham que os défices são sempre maus (porque, na visão deles, os défices seriam sempre obstáculos no caminho de um estado cada vez menor e menos interveniente na economia) e aqueles que acham que os défices não são bons nem maus em si: são instrumentos ao serviço dos poderes públicos, que podem ser bem ou mal utilizados dependendo do contexto económico. Dentro desta segunda posição no debate económico, o chamado keynesianismo defende que a intervenção pública na economia se deve fazer de forma contra-cíclica, ou seja, aumentando o défice quando é necessário combater as recessões e diminuindo o défice em fases de crescimento económico. Isto quer dizer que é um mau serviço ao atual debate querer hoje confundir a diminuição de umas décimas de défice em 2018, quando há crescimento económico, com o famoso "frontloading” de austeridade de Vítor Gaspar e Passos Coelho em 2012, quando havia quem acreditasse que o ritual dos cortes orçamentais nos credibilizaria perante os mercados - e acabou a transformar uma recessão numa depressão. Os keynesianos sempre disseram o contrário: que só com o regresso do crescimento se deveria aproveitar para diminuir dívida e défice.

Mas aí entra uma terceira dimensão: a da política. O défice português é neste momento historicamente baixo. Numa situação de crescimento económico, a sua proporção em relação ao PIB desce mesmo sem se fazer “nada” (para simplificar: sem cortes nem aumentos de despesa). Nestas condições, baixar ou subir umas décimas de défice é uma escolha política que deve ser orientada por um critério claro e não por um fetiche. Tal como nem todas as despesas são iguais quando se corta, nem todas são iguais quando se gasta. Uma subida de algumas décimas de défice que contribuísse decisivamente para resolver problemas estruturais do nosso país (um plano Marshall para o interior? o alargamento ou a universalização da rede pré-escolar? uma reforma da administração pública? um plano de investimento a sério na via férrea?) teria, a meu ver, uma justificação política muito forte. Infelizmente, esse não é o debate que tem sido feito - nomeadamente entre a maioria de esquerda, que é quem deveria ter um interesse maior em fazê-lo.

A pessoalização para efeitos mediáticos e mesmo a desresponsabilização política por parte de quem, afinal, até aprova os orçamentos de Centeno, tem desviado as atenções de uma discussão que seria muito mais proveitosa para o país.

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