Um senhor que vive na rua... e passa o tempo a ler

Este domingo de Páscoa lá estarei novamente, sentada à porta do mesmo supermercado. Levarei na bagagem mais uns livros e vamos colocar a conversa em dia.

Há exactamente um ano, no domingo de Páscoa, saí do consultório em Lisboa, ao final da manhã, e fui ao supermercado. Tarefas banais que se cruzaram com um senhor de longas barbas brancas, de idade indefinida, sentado no chão, a ler. Um senhor que reside ali mesmo, ao lado do supermercado. Local onde centenas de pessoas entram e saem todos os dias, sempre apressadas, sempre centradas nos seus mil afazeres, sempre a olhar para o relógio. Também eu já lá tinha ido muitas vezes e confesso que nunca o tinha visto. Pelo menos não daquela forma.

Depois das compras perguntei se podia sentar-me ao seu lado. Acedeu de forma afirmativa. E continuou a ler.

Meti conversa, devagar, e perguntei o que lia com tanto entusiasmo. “O nome da Rosa, consegui por um euro!”, disse, mostrando o livro como quem ergue um troféu. Algo precioso. “É a quarta vez que o leio.”

Olhei em redor e vi diversas garrafas vazias. De água. Cobertores, sacos e tantas outras coisas que não sei definir. As suas coisas. O seu mundo.

E como a conversa é como as cerejas, ali nos deixámos ficar, ora em silêncio, ora a conversar sobre o livro, contando-me com agrado qual o enredo, lendo em voz alta algumas passagens que considerava mais importantes.

As pessoas iam passando e algumas pararam. Pararam talvez como eu, pela primeira vez, junto de alguém que ali está todos os dias, a todas as horas, de dia e de noite, mas que nunca tinham visto. Pessoas que mostraram interesse por uma situação que desafia todos os preconceitos e estereótipos. Contraria as ideias pré-concebidas que temos das pessoas em condição de “sem abrigo”. Então não são todos alcoólicos, drogados, talvez violentos e certamente analfabetos? Podem, alguma vez, interessar-se por literatura e beber apenas água?

Sim, podem. O senhor de quem falo, e tantos outros, bebem água e interessam-se por cultura. Tiveram toda uma vida antes de passarem a viver na rua e não se resumem à sua condição de pessoa que vive sem abrigo. São pessoas, com uma história, com um passado que, a maior parte das vezes, envolveu família e trabalho. São pessoas com emoções, desejos, receios e angústias. São seres humanos complexos. Com tudo o que isso implica.

Desde então tenho-me dedicado a garantir que não faltam a este senhor livros para ler. “Gosto de romances históricos e de História”, disse. Pois seja. Entre colegas e amigos, reúno livros e deixo-lhos para ler. Não tem de ler quatro vezes o mesmo livro por falta de opções. Se os reler, que seja porque os ama e por isso os quer revisitar.

Mas isto não chega. Isto é apenas uma parte de um todo sobre o qual é preciso reflectir.

No âmbito da representação que faço da Ordem dos Psicólogos Portugueses num grupo de trabalho europeu sobre "Direitos Humanos e Psicologia", reuni com o referido grupo há cerca de um ano em Genebra. A cidade surpreendeu-me com as suas pequenas bibliotecas de rua, espalhadas pela cidade, onde existem caixas abertas, mas protegidas da chuva, com livros disponíveis aos cidadãos de forma totalmente livre e gratuita. Sem cartão de acesso. Sem horários de funcionamento. Com total anonimato. Livros que as pessoas levam para ler e devolvem depois de lidos. Se quiserem.

Porque não existem em Portugal? Sim, as pessoas que vivem em condição de sem abrigo também sabem e gostam de ler. E ler é, muitas vezes, a melhor forma que encontram para fugir do seu quotidiano, tão cheio de coisas menos mágicas.

Posteriormente soube da existência de uma organização sem fins lucrativos, fundada por duas mulheres fantásticas. Sediada em Lisboa e ainda a dar os primeiros passos, a "All Humans" desenvolve um trabalho meritório no desenvolvimento de condições um pouco melhores a quem não as tem. Vale a pena conhecer o trabalho que desenvolvem, apesar de tantos constrangimentos. Uma das suas principais missões é precisamente a distribuição de livros pelas pessoas que vivem na rua. “Quem não sabe ler pede-nos livros infantis, ou de banda desenhada”, disseram-me.

Já tive o privilégio de as acompanhar, com outros voluntários, numa acção nocturna. Enquanto uma das principais associações de Lisboa distribuía alimentação e tentava perceber outro tipo de necessidades das pessoas com quem se cruzava, em locais pré-definidos e que todos conhecem de cor, nós distribuímos bens de higiene. Recordo a felicidade de uma senhora ao receber um creme hidratante e que pediu, a medo, se alguma vez poderíamos levar-lhe um batom. “Gosto muito de cor e de estar sempre maquilhada”, dizia. Contou-nos a sua história, marcada por perdas sucessivas e desencantos vários. Com lágrimas nos olhos e um sorriso na boca, falava com esperança no futuro. Uma lição de vida.

Este domingo de Páscoa lá estarei novamente, sentada à porta do mesmo supermercado. Levarei na bagagem mais uns livros e vamos colocar a conversa em dia.

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