Quando um casal se divorcia, qual dos dois mente melhor?

Uma juíza pergunta a um casal que luta pela custódia do filho: qual deles mente melhor? Os actores Léa Drucker e Denis Ménochet ajudam a perturbar a previsibilidade do “filme de tema” com a instabilidade do thriller.

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Léa Drucker e Denis Ménochet na sequência de abertura: qual deles mente melhor?, pergunta a juíza

Para um filme funcionar, é decisivo um casting sem mácula. É o que diz Xavier Legrand, realizador de Custória Partilhada. “Quando se escolhe o actor certo para a personagem, 90 por cento do trabalho está feito.” Neste caso até estava feito antes. Tratava-se de prosseguir com os actores Léa Drucker e Denis Ménochet uma história que vinha de uma premiada curta-metragem, Avant que de tout perdre (Grande Prémio do Festival de Clermont-Ferrand 2013 e César da melhor curta), em que uma mãe e os dois filhos se refúgiavam da violência familiar num centro comercial. Revelavam o que lhes acontecia, precisavam de se esconder. Já aí Léa era Miriam e Denis era Antoine. Tratou-se, então, diz o realizador, de continuar a seguir as intuições dos intérpretes das personagens daquela mulher e daquele marido e guiá-los com as suas próprias intuições. Definiu linhas: “Antoine estava em negação da sua própria violência, pensa em si próprio como vítima, disse a Denis que interpretasse uma vítima ao longo de todo o filme. Já Miriam está siderada, destruída, com a esperança de se reconstruir, o que não conseguirá enquanto durar a influência deste homem sobre ela. Tem vergonha desta situação, sente-se culpada também. Disse a Léa que atravessasse as situações como culpada, alguém com alguma coisa a esconder”.

O espectador vai negociando a sua posição perante Miriam e Antoine. Isto é virtude do trabalho de actor. Isto é mise en scène - isto é um “filme de tema” que se intensifica com a experiência pura do “filme de género”: o thriller.

Na primeira sequência, o processo para regulamentar a custódia dos filhos, começamos a negociar com as personagens. Pensamos coisas sobre este pai e esta mãe. Por exemplo, que talvez ela manipule, que talvez ele queira apenas estar próximo dos filhos. Para a juíza, como ela diz, trata-se de saber qual dos dois mente melhor. Para vocês esse início significa o quê na lógica das vossas personagens?
Léa Drucker — Começámos a rodar o filme por essa sequência, eu estava “alimentada” por aquilo que tínhamos feito antes, uma curta-metragem [Avant que de tout perdre]. Mas isso o espectador de Custódia Partilhada não tem de saber, provavelmente não viu a curta. Se viu, torna-se ainda mais interessante, porque há uma perturbação, algo que vacila, não conseguimos ter uma opinião, tal como a juíza não consegue ter uma opinião.

A mim interessou-me mostrar uma mulher perdida numa máquina judicial muito complexa. As nossas duas personagens são invadidas pela linguagem jurídica — a minha personagem é mais observadora. Essa cena mostra o que um casal atravessa quando litiga para obter a guarda de um filho.

Denis Ménochet — Para mim é o princípio de um duelo. Algo próximo da realidade, aliás, como toda a terminologia jurídica. Mas é também o princípio de uma decisão que vai colocar em perigo uma criança.

Essa sequência faz-se com uma série de planos tensos em que não há contacto físico entre as personagens — talvez por isso —, apenas palavras...
D.M. — Sim, a tensão estava lá. Não houve ensaios. Rodámos. A tensão é dada também pelo trabalho de som — em todo o filme, aliás. Mas nessa cena há tensão porque há as grandes tiradas dos advogados e o silêncio da juíza que folheia... e quando há silêncio depois de uma quantidade enorme de palavras...

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Este casal tem a sua história. Que não está no filme. Vocês têm uma versão dela, é importante tê-la?
L.D. — Sim, de outra forma não conseguiria sustentar a personagem. Tenho necessidade disso, mas a nível do meu imaginário. É como um segredo. São coisas que não se dizem, nem dissemos nada um ao outro.

Acho interessante a sugestão de que tudo o que se passa se constrói a partir de um amor em ruínas - mas houve amor. Há aquela sequência em que Antoine [Denis Ménochet] entra no apartamento, abraça-me, há o gesto algo trágico de uma mão que tenta algo mas não se define... para mim há algo de profundo entre eles.

Essa gestualidade estava prevista?
L.D. — Esses gestos não estavam escritos, trata-se de mise-en-scène, ou seja, é também direcção de actores. O realizador escuta o que propomos, coloca a câmara no lugar que nos permite imaginar coisas dessas e sabe receber o que o actor propõe. É isso a mise-en-scène.

Denis, é possível gostar da sua personagem?
D.M. — Eu adoro-o [risos]. Não se pode julgar uma personagem se a interpretamos. Tive de fazer pesquisa junto das pessoas que se comportavam desta maneira, que tinham esta violência... era essencial para me sentir legitimado a também eu contar a história de uma pessoa assim. Como actor isso é uma prenda. Como ser humano... diria o que as pessoas dizem: este tipo é louco. Mas ao interpretá-lo, sinto afecto por ele.

É importante passar essa ambiguidade. Na vida real as pessoas são vítimas de gente assim porque, precisamente, essas pessoas são desestabilizadoras, jogam, escondem-se — escondem o mal que causam e assim obtêm os seus fins.

L.D. — Denis interpreta Antoine com um ser humano, com as suas emoções, a sua fragilidade. Dessa forma, é mais perturbante do que se fosse apenas um monstro tirânico. Não quer dizer que o filme o defenda, mas é uma personagem comovente na exacta medida em que perturba - é essa a dificuldade.

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É misterioso ver actores-crianças, nunca se sabe que consciência têm do que estão a dizer e do que lhes estão a dizer... Por exemplo: a sequência no carro, entre pai e filho, o grande plano sobre Thomas Gioria [Julien] como eco da violência, como se a recebesse toda. Vocês são actores, ele não. As coisas passam-se ao mesmo nível?
L.D. — Demos com uma criança que é um actor com intuição bastante apurada, inteligente. Entre as cenas Thomas é de facto uma criança. Vinha de lugar nenhum, embora tivesse tido longo trabalho de preparação, com Xavier [Legrand, realizador] e com um coach, de abordagem do argumento, para que tudo ficasse claro para ele, sem o brutalizar, obviamente. E para que tudo permanecesse no nível do jogo, do lúdico.

D.M. — Podemos ter consciência intelectual das coisas. Mas quando há o “acção”, a cena passa para aqui [aponta para o estômago]. Ninguém olha para si mesmo a dizer “agora vou chorar” sob pena de não haver energia, de a coisa não ser orgânica. Ele tinha tanta vontade de interpretar — conhecia a história, compreendia-a, percebia o que estava em causa — que entrou na cena como se fosse um jogo de ténis: devolvia-me a bola de cada vez que eu lhe enviava a bola.

Tudo se mantém no espaço do jogo?
L.D. — Sim e não. É verdade que quando interpretamos coisas destas que não são ligeiras, temos de mergulhar nelas. Acontece que Thomas é um jovem actor que admitiu isso para si próprio. Não sei como é que isso existe nele, nem onde, mas existe: quer ser actor. Tudo começa por um verdadeiro desejo de ser actor. Não está ali porque os pais querem. É ele que aceita dar algo de si mesmo, mesmo se ainda não sabe o que é. Não era apenas um jogo, quando havia cenas dramáticas, eles vivia-as...

D.M. — É o trabalho de actor que lhe interessava. Mas quando se dizia “corta”... jogámos futebol todo esse Verão, fizemos barbecues. Ainda hoje nos telefonamos. A experiência de um miúdo num Verão a fazer um filme deve ser a coisa principal — e não o assunto atroz. Foi um super Verão, com algumas cenas difíceis para interpretar.

L.D. — Xavier contou-me que quando escrevia o argumento pensava: “Estou a escrever isto para uma criança mas não sei que criança pode alguma vez interpretar isto.” E como é muito doce, Xavier, ele próprio foi surpreendido pelas propostas que Thomas lhe fazia. Toda a gente se ocupava dele, para saber onde é que ele estava, se queria parar, etc, mas ele dizia que não, queria sempre continuar.

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