A crise catalã

O problema catalão é de natureza eminentemente política e só nessa esfera poderá ser resolvido.

As democracias liberais assentam, entre outras coisas, na possibilidade de estabelecer uma distinção entre as esferas da moral, da política e do direito. Essa distinção não significa uma separação abrupta. Estas três esferas acabam por comunicar umas com as outras, tornando assim mais complexos os processos deliberativos e mais polémicos os juízos valorativos. Vem isto a propósito da presente crise catalã. A decisão tomada pelo poder judicial espanhol no sentido de proceder à prisão preventiva de várias figuras ligadas à causa independentista e à detenção, em território alemão, de Carles Puigdemont, originou uma ampla discussão política que extravasa o campo da vida pública espanhola.

Não é fácil abordar este tema. De um lado temos a ordem constitucional espanhola baseada num arquétipo democrático-liberal, coincidente com o padrão em vigor na generalidade dos países ocidentais, e, a seu tempo, devidamente sufragada em referendo por uma ampla maioria popular. Os próprios catalães votaram expressivamente a favor da presente constituição espanhola. Do outro lado observamos a existência de uma aspiração nacionalista catalã que suscita uma significativa adesão cívica e eleitoral. Pelo meio temos um processo histórico simultaneamente marcado, no período democrático, pelo voluntarismo político das autoridades catalãs com vista à consolidação de uma identidade nacional e pelas dificuldades manifestadas pelo poder central, localizado em Madrid, em tratar tão sensível tema.

Chegamos assim a um impasse perigoso, que exclui qualquer tipo de solução simplista. Felipe González, provavelmente a maior figura da democracia espanhola e insuspeito de qualquer simpatia pela pretensão nacionalista catalã, insurgia-se há dias contra a possibilidade de encarceramento de mais figuras ligadas ao independentismo. Na sua opinião, se isso acontecesse seria percebido como uma verdadeira humilhação da Catalunha, com todas as consequências que daí poderiam recorrer. Na realidade foi isso mesmo que aconteceu. O juiz que determinou a prisão preventiva de vários dirigentes catalanistas permitiu-se estabelecer uma comparação entre o processo independentista e os acontecimentos ocorridos em 23 de Fevereiro de 1981. Convenhamos que essa comparação é infame. Em Fevereiro de 81, um grupo de militares nostálgicos do regime franquista irrompeu pela Câmara dos deputados espanhola adentro, sequestrou os membros do governo e os parlamentares e intentou a destruição da novel democracia. O que se passou então foi uma autêntica rebelião violenta contra a ordem constitucional democrática que estava a dar os seus primeiros passos. Identificar tal acontecimento com o que se passa presentemente na Catalunha revela até que ponto o poder judicial espanhol se permite intrometer, de modo pouco cuidado, no âmbito do debate político, concorrendo dessa forma para a agudização de um problema que verdadeiramente não está ao seu alcance solucionar.

O problema catalão é de natureza eminentemente política e só nessa esfera poderá ser resolvido. É evidente que Puigdemont não é um perigoso terrorista, nem os muitos milhares de catalães que advogam a independência podem ser percebidos como violentos opositores às regras da convivência democrática; defendem uma opção nacionalista catalã, como outros preconizam um caminho nacionalista espanhol. Aliás, o pior que poderia acontecer a Espanha nos próximos tempos seria precisamente a polarização do debate político em torno de um confronto entre o nacionalismo espanholista e os nacionalismos periféricos.

Um assunto desta natureza carece de ser tratado no plano mais elevado da política. A judicialização do tema é meio caminho andado para o desastre. Exige-se assim aos principais responsáveis políticos espanhóis e catalães uma grandeza que é incompatível com qualquer tipo de calculismo eleitoral. É óbvio que não há condições históricas para que a Catalunha se torne independente, mas é igualmente verdade que não é possível a manutenção da presente situação institucional. Mais cedo ou mais tarde, muito provavelmente a Espanha terá de evoluir para um modelo federal, o único que se antecipa capaz de assegurar a resolução das enormes tensões que inevitavelmente afectam um Estado de natureza plurinacional.

Há quem em Portugal tenha receio de uma evolução do modelo constitucional espanhol no sentido da consagração de um sistema federal. Suspeitam que nesse contexto se verifique uma grande pressão tendente à integração do nosso país numa União Ibérica. Francamente parece-me absurda tal inquietação. Talvez ela fizesse sentido se não estivéssemos integrados na União Europeia. No actual contexto histórico é impensável a diluição da nossa independência nacional num qualquer projecto iberista. A nossa partilha de soberania estabelece-se estritamente no quadro europeu. A circunstância de cada vez mais termos pontos de vista coincidentes com os espanhóis é algo que só nos deve satisfazer. Uma coisa, porém, é essa coincidência de interesses, outra, muito diferente, seria a nossa participação numa união ibérica. É certo que grandes espíritos já a preconizaram, só que o fizeram num contexto bem diferente do actual. Presentemente, a nossa vocação é muito mais europeia do que ibérica.

 

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