E no início houve o Manuel Reis

Terá havido um ou outro presidente de câmara, alguns arquitectos, novas instituições culturais e criadores que vieram consolidar o novo cosmopolitismo de Lisboa. Mas ao princípio houve o Manel Reis — e isso nunca o poderemos esquecer.

O Manel morreu e eu ainda não quero acreditar. A condição humana é assim, mortal, mas tenho a certeza que, mesmo padecendo de grave doença, deveria estar ainda a fervilhar de ideias, como sempre.

Não nos víamos há uns tempos mas tendo sabido que estava doente tinha-lhe ainda há semanas deixado uma mensagem e um abraço, esperando as rápidas melhoras. Éramos amigos de 35 anos, mas “amigo” parece-me uma palavra demasiado banal para a cumplicidade que nos uniu.

Tinha sido comissário de bordo, e manteve sempre o gosto das viagens, de descobrir outras terras e outras gentes — não era um turista mas um cosmopolita. Mas tinha uma outra paixão, o design, a moda e a arquitectura, e num sítio mal-afamado, o Bairro Alto, abriu uma brecha que foi a Loja da Atalaia. Depois, com o Fernando e o Zé Miranda, um restaurante, o Pap’Açorda, e enfim, a 15 de Junho de 1982, um bar, o Frágil.

Ao princípio o espaço suscitava-me alguma irritação, porque sucedera nas famosas listas de pessoas para entrar, e que dependia dos caprichos das porteiras deixarem ou não, uma vez ter sido recusado, e porque os vistosos e muitos chiques fatos dos empregados, com casaco vermelho, me pareciam uma espampanância de novo-riquismo. Mas numa noite tudo mudou.

Passagens de ano é algo que gosto de festejar e na de 1983 para 84 estive no Frágil. Assisti a um espectáculo musical de uma qualidade como é raro, mesmo muito raro suceder num bar. Nessa noite reconciliei-me — não pude deixar de lhe dar os parabéns, já que tinha sido ele a conceber o espectáculo — com o José Ribeiro da Fonte e de facto conheci o Manel Reis. Essa foi mesmo daquelas datas da minha vida que não esqueço nem nunca poderei esquecer. Passei logo a “habitué”.

O Manel gostava de organizar festas de temáticas completamente fora do comum (por exemplo, a Noite Japonesa) e de promover espectáculos de teatro musical, a maioria com a cumplicidade do Zé Fonte, ou os shows do Luís Madureira, da Lia Gama ou da Anamar, esta de resto também uma das porteiras, com a Guida, a “Guida gorda”, futura fundadora da Abraço e agora presidente da freguesia de Arroios.

Mas se isso já era muito, o que verdadeiramente distinguia o Frágil era que, apesar da exiguidade, tinha duas salas bem distintas, uma de discoteca, outra, com mesas, de conversa. E para quem não viveu esses anos deve ser impossível de imaginar que um bar foi também um espaço de discussão intelectual absolutamente marcante — já nada assim existe.

Aí construí verdadeiramente relações com, entre outros, o pintor Julião Sarmento ou o arquitecto Manuel Graça Dias, aí conheci futuros cineastas como o Joaquim Leitão, o Edgar Pêra e o Manuel Mozos, mas sobretudo, sobretudo, passava horas e horas em conversas com o Zé Fonte, o Al Berto e o Pedro Cabrita Reis, este que aliás, sendo já artista reputado, foi a certa altura convidado pelo Manel Reis a redecorar o espaço.

Ali conheci a minha futura mulher — e o Manel falava a sorrir da quantidade de casamentos e ligações que já se tinham feito e desfeito no Frágil — e ali pela única vez fiz uma festa de aniversário, aos 30.

Estava lá caído praticamente todas as noites. Às 3h da manhã o espaço fechava invariavelmente com a mesma música: em lugar do pop ouvia-se a derradeira das Quatro Últimas Canções de Richard Strauss, na interpretação de Gundula Janowitz e Herbert von Karajan! E eu era sempre o último a partir, porque já todos os clientes tinham saído, e eu continuava com o Manel, o Jonas (seu companheiro) e os empregados, enquanto ceavam.

Muitas vezes ia sozinho, mas também muitas outras com o que alguns maliciosamente chamavam “o bando dos quatro”, isto é, a Clara Ferreira Alves, o Miguel Esteves Cardoso e o Alexandre Melo, ou seja, gente do Expresso – A Revista. E de facto houve nesses anos 80 um eixo entre o Frágil e o Expresso – A Revista (gene do futuro PÚBLICO).

Parafraseando e contrariando um slogan político insistente sobre “a pesada herança do fascismo”, costumava eu dizer que culturalmente precisávamos de nos libertar da “pesada herança do antifascismo”, a velha cultura da oposição democrática. E foi entre o Frágil e o Expresso – A Revista, mais uma geração de artistas emergentes e de novas galerias que, quase de repente, achámos que já éramos sim pós-modernos, e seguramente afirmámos uma nova cultura cosmopolita. E nessa tão radical mudança o Manel Reis abriu portas.

A certa altura decidiu transferir-se, fosse pelo seu constante gosto de mudar, fosse porque o Bairro Alto do qual ele começara a mutação se tinha entretanto transformado na zona noctívaga por excelência, apejada de bares e com as ruas cheias de pessoas com copos de cerveja. E foi para a Bica do Sapato, frente à estação de Santa Apolónia, abrindo o Lux-Frágil — além de surgir um restaurante gémeo do Pap’Açorda, o propriamente dito Bica do Sapato. E apesar dos eventos que ele ainda lá organizou ou alojou, não foi mais o mesmo. Ainda que com dois andares distintos (além do magnífico terraço), o Lux é de facto uma discoteca, sem condições para as conversas que havia no Frágil — e assim foi deste, e só dele, que me ficou, fortíssima, a memória.

Nunca soube qual o seu dia de anos mas, sem falta, todos os 15 de Junho, no aniversário do Frágil, lhe telefonava.

A certa altura pediu-me que colaborasse com ele num projecto: de entre milhares de slides que havia do Frágil escolher uns tantos para pôr online e que ele gostava que tivesse um texto meu. Ainda passámos juntos umas quantas tardes mas o texto, cujo título me ocorreu de imediato, “Aqueles nossos anos 80”, acabei por o ir adiando, adiando, e enfim não o fazer. Nunca me perdoei, porque além de, com as imagens, poder ser um documento interessante, fiquei em falta com o Manel Reis. Mas, cada vez mais espaçadamente, ainda íamos falando ou almoçando. Agora não haverá mais isso e eu ainda não o consigo racionalizar.

Pois, terá havido um ou outro presidente de câmara, alguns arquitectos, novas instituições culturais e criadores que vieram consolidar o novo cosmopolitismo de Lisboa. Mas ao princípio houve o Manel Reis — e isso nunca o poderemos esquecer.

É da ordem natural das coisas que familiares, amigos ou pessoas que admiramos vão desaparecendo, mas o que sinto com a morte do Manel Reis é de outra ordem: ele foi uma parte indelével da minha vida durante décadas. Na hora do choque, todas as palavras póstumas de gratidão me parecem insuficientes, senão mesmo banais. Que fique então a mais simples: obrigado, muito obrigado, meu querido Manel Reis...

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