Rede Ferroviária: defender os interesses portugueses

Uma rede ferroviária de bitola europeia que ligue Lisboa e Porto em menos de hora e meia é possível por um terço do custo do TGV.

Com a presença dos primeiros-ministros de Portugal e de Espanha, e da comissária europeia dos Transportes, teve há dias lugar em Elvas uma aparatosa cerimónia de abertura do concurso para a construção de um troço de 20 quilómetros da futura linha férrea entre Évora e Elvas.

Esse troço, que corresponde à primeira fase da construção de uma linha de 80 quilómetros entre essas cidades, representa um investimento de 500 milhões de euros e irá permitir ligar mais diretamente o Porto de Sines (e os de Setúbal e Lisboa) a Badajoz. Da cerimónia constou também a consignação das obras de modernização dos 11 quilómetros do troço entre Elvas e a fronteira do Caia.

Todavia, o Governo falhou todos os prazos que estimou para a construção desta ligação. Segundo o plano Ferrovia 2020, anunciado em 2016, a linha entre Évora-Norte e Elvas devia estar em execução desde o início deste ano, o troço de Elvas até à fronteira já devia estar concluído e a ligação de Évora a Évora-Norte, que devia ter terminado no segundo semestre de 2017, nem sequer foi lançado o concurso.

A presença do primeiro-ministro espanhol mostra existir um bom entendimento entre Portugal e Espanha quanto às ligações ferroviárias entre os dois países? Infelizmente, a realidade é bem diferente. Fundamentalmente, Espanha protege os seus interesses; esta obra interessa-lhe porque as mercadorias descarregadas em Portugal vão chegar a Badajoz mais depressa, de onde sairão de acordo com a vontade e os interesses espanhóis.

Veja-se o caso do comboio Sud-Express, que a CP explora há mais de um século e que faz a ligação entre Lisboa e Paris, com transbordo para comboios franceses na fronteira franco-espanhola de Hendaye-Irun. Desde há alguns meses, a ligação está interrompida entre as duas cidades, numa distância de quilómetro e meio, porque os espanhóis não dão autorização para que os comboios franceses que fazem essa ligação entrem em território espanhol, obrigando os passageiros que querem apanhar o comboio para Portugal a fazer esse percurso de táxi ou a pé. Sobre isto, publicamente, as autoridades portuguesas nada dizem.

Aliás, nisto de ligações transfronteiriças, o que faz impressão é a ausência de estratégia do lado português, limitando-se a “ir à boleia” dos planos e interesses espanhóis. Veja-se o caso das pretensas ligações em bitola UIC (ou bitola “standard”, que entre nós alguns chamam de bitola “europeia”) de Portugal à Europa.

Há dez anos atrás, no tempo de Sócrates, o país andou muito “excitado” com a ideia da construção em Portugal de uma rede de “TGV” (Alta Velocidade), que seria em bitola UIC e privilegiava as ligações com Espanha.

Contudo, a megalomania do plano, que representava um investimento de mais de 15 mil milhões de euros, soluções técnicas controversas e o facto de ser realizado através de PPPs, fez com que nada fosse feito. Pior, o país viu-se perante uma crise financeira sem precedentes, que fez disparar a dívida pública e os respetivos juros, que estão a levar mais de 10% dos nossos impostos todos os anos.

Para se ter uma ideia, o que o país pagou a mais de juros (em relação ao que pagava antes) nestes últimos 12 anos são mais de 30 mil milhões de euros, o que dava para pagar essa rede de “TGV” e um novo aeroporto, e ainda sobrava muito dinheiro. Isto é, não fizemos as obras e ficámos sem dinheiro!

Agora, o Governo atual diz que o “TGV” é um assunto tabu e aquilo que se propõe fazer é a construção de pequenos troços de linhas férreas e a melhoria de outros já existentes, adotando travessas “polivalentes”. Essas linhas continuarão a funcionar em bitola ibérica (a atual), mas as novas travessas dispõem de furações para, um dia, os carris passarem a funcionar em bitola UIC. Isso significa que nessa altura essas linhas deixarão de ser compatíveis com a restante rede, pelo que os problemas de compatibilidade entre bitolas passarão a ser cá dentro do país.

Em contrapartida, existe um grupo que defende à outrance a construção de uma rede ferroviária de bitola “europeia” em Portugal, como se isso fosse a panaceia para os problemas de competitividade da economia portuguesa, tendo publicado meses atrás um “Manifesto” sobre o assunto. Entretanto, os dirigentes da Ordem dos Engenheiros foram convencidos a organizar, há dias, uma sessão sobre o assunto, pomposamente apelidada de “A Solução Ferroviária”.

Quando se esperava que essa sessão fosse uma oportunidade para uma discussão franca e aberta, o que houve mais pareceu um comício proclamatório. Após uma intervenção inicial de um representante da IP (Infraestruturas de Portugal), a apresentar os planos do Governo, os seis palestrantes seguintes eram subscritores do “Manifesto”. Todavia, uma proposta de rede de bitola “europeia”, com comparação de alternativas de traçado, de caraterísticas técnicas e de custos, calendarização das obras, etc., não se viu.

A menos que, conforme insinuam algumas vozes, tudo isto não passe de uma cortina de fumo para que nada seja feito e assim abrir caminho para a construção de um novo aeroporto em Canha, Alcochete. Aliás, é curioso o facto de o representante da IP, que agora defende os planos minimalistas do Governo, ter sido o principal responsável pelo plano do “TGV”.

Portugal precisa, de facto, de uma rede ferroviária de bitola UIC, mas que funcione articulada com a rede existente e seja compatível com as atuais condições económico-financeiras do país. No próximo dia 28 de março, às 17 horas, será proferida na Sociedade de Geografia de Lisboa uma conferência em que será apresentada uma solução que visa cumprir esse desiderato.

A rede de bitola UIC deverá servir para o transporte de mercadorias, ligando os principais portos e centros de produção e de consumo portugueses à Europa central, mas também para o transporte de passageiros, em Alta Velocidade, nos eixos principais, ligando Lisboa e Porto em menos de hora e meia, e Lisboa e Madrid em menos de três horas.

Ora, essa rede é possível por apenas cinco mil milhões de euros, um terço do custo do “TGV”. A sua implementação durante os próximos 12 anos (procurando maximizar os fundos europeus do programa 2020 e do quadro europeu 2030) significa um investimento de cerca de 400 milhões de euros por ano (o equivalente a 0,2% do nosso PIB), o que é perfeitamente compatível com as nossas possibilidades, mesmo sem os fundos europeus.

Contudo, não basta a realização das obras em Portugal. Através da União Europeia, Portugal deverá pressionar a Espanha (e também a França) para a rápida criação através desses países de corredores em bitola UIC, que permitam essas ligações. Situações como as que estão a ocorrer com o Sud-Express, ou com o comboio de mercadorias que durante uns meses funcionou entre Lisboa e o centro da Alemanha, e que fechou porque em França não foram disponibilizados “slots” (horários) para a sua passagem, são inaceitáveis.

Temos que ter ideias claras e batermo-nos por elas. Se não o fizermos, apesar das palmadinhas nas costas, ninguém o fará por nós.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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