As guerras comerciais na luta pelo poder mundial

Com ou sem Donald Trump, as guerras comerciais, disfarçadas ou abertas, serão cada vez mais uma componente da luta pelo poder mundial.

1. A decisão dos EUA de aplicação de tarifas sobre a importação de aço e alumínio gerou grande consternação internacional. Foi vista como uma inadmissível restrição ao comércio internacional, quer no plano dos princípios, quer no plano das regras estabelecidas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). No plano dos princípios está em rota de colisão com o ideário do liberalismo económico, que sustenta vantagens generalizadas da abertura ao livre-comércio. Na óptica liberal, as especializações nacionais devem ser determinadas pela concorrência internacional, não por barreiras ao comércio ou subsídios estatais artificiosos. Tal concepção tem implicações na política comercial e industrial nacional. Supõe, desde logo, que um Estado se abstenha de criar unilateralmente restrições ao comércio, as quais apenas serão admitidas no âmbito das excepções previstas pela OMC. Os acordos desta organização que abrangem bens, serviços e a propriedade intelectual, são largamente inspirados no ideal do livre-comércio.

2. Apesar da predominância do pensamento económico liberal nesta era de globalização, a contestação às suas teses nunca desapareceu. Tem uma longa história que vai além da conhecida crítica de Karl Marx ao capitalismo e à livre troca internacional. No século XIX, quando a Alemanha, ainda em processo de unificação, começava a emergir como potência industrial, Friedrich List defendeu vigorosamente o proteccionismo. Ironicamente, foi durante a sua estadia nos EUA que obteve a principal inspiração para as suas ideias, a partir do “Relatório sobre as Manufacturas”, feito por Alexander Hamilton em 1791, para o nascente Estado federal norte-americano. Os argumentos de Friedrich List são um clássico na protecção da economia nacional. Na sua óptica, o fim da política comercial vai além do mero bem-estar económico. As forças produtivas têm o poder de criar riqueza, sendo tal poder mais importante do que a riqueza em si mesma. Assim, há necessidade de protecção da economia nacional com direitos aduaneiros e/ou contingentes de importação. Para além disso, devem existir, no território nacional, as produções essenciais em caso de guerra.

3. Donald Trump tem uma visão do comércio internacional que faz lembrar as teses de Alexander Hamilton e Friedrich List. Vê o comércio internacional como uma competição similar a jogos de soma zero onde o objectivo é a vitória pela exportação de bens: “as guerras comerciais são boas e fáceis de ganhar”. Importar de outro país, mesmo quando as vantagens comparativas sugerem ser razoável fazê-lo, tende a ser visto como uma derrota que afecta o orgulho nacional. Por isso, reitera que os norte-americanos têm maus acordos comerciais — a NAFTA, com o Canadá e o México; a TTIP, que estava em negociações com a União Europeia e foi abandonada; e a TPP, com o Japão e outras economias da Ásia-Pacífico, que se recusou já a ratificar. O argumentário de Donald Trump tem ressonância nos eleitores, sobretudo se estes perderam os seus empregos ou vêm o seu bem-estar ameaçado pela concorrência internacional. Não é por acaso que entre o Partido Democrata, sobretudo no Midwest em declínio industrial, a decisão de aumento dos direitos aduaneiros teve também apoios. Um dos problemas dos acordos de livre comércio é que os benefícios tendem a ter uma distribuição difusa através do consumo, enquanto os maiores custos tendem a recair sob um ou vários sectores específicos. Quando um direito aduaneiro é lançado ocorre o inverso: os benefícios são concentrados (nos sectores protegidos) e os custos dispersos (pelos consumidores e/ou resto da economia), ampliando-se se houver retaliações comerciais.

4. Ao contrário do passado do século XIX e primeira metade do século XX, os alemães têm hoje muito a perder com o nacionalismo económico dos EUA e uma nova vaga de proteccionismo aduaneiro (ver “The Trade Warrior Donald Trump's Attack on German Prosperity”, in Spiegel Online International, 12/13/2018). A orientação da sua economia para as exportações é um inquestionável caso de sucesso no comércio internacional. Ao mesmo tempo traz uma vulnerabilidade estratégica. Em vários sectores-chave, entre os quais as indústrias do sector automóvel, de maquinaria, de engenharia eléctrica, de produtos farmacêuticos e de instrumentos de precisão, grande parte das suas exportações vão para os EUA. O valor dos produtos exportados quase quintuplicou desde 1990. Assim, calcula-se que mais de 1,5 milhões de postos de trabalho alemães estarão, directa ou indirectamente, dependentes de negócios com os EUA. Um caso particular de dependência da sua economia face aos norte-americanos é o sector automóvel, com cerca de 20% do total das exportações alemãs para a América do Norte. Os fabricantes de automóveis alemães exportam cerca de 500 mil veículos por ano para esse mercado (também produzem cerca de 800 mil automóveis nos EUA para venda interna ou em países terceiros, especialmente da NAFTA).

5. A imposição unilateral de direitos aduaneiros tende a levar a retaliações comerciais, podendo desencadear guerras comerciais de maior ou menor dimensão. O problema clássico é o do Smoot-Hawley Act dos EUA, no conturbado período dos anos 1930. Normalmente é visto como exemplo maior dos efeitos nefastos do proteccionismo económico, que desencadeia uma espiral de medidas similares, as quais levam a perdas de bem-estar económico e acentuam rivalidades políticas. Poderá acontecer isso hoje? Na União Europeia, desde logo devido ao já referido caso da Alemanha — e à pressão desta sobre as instituições europeias para actuarem —, foram já delineadas medidas de retaliação comercial. Passam por aplicar um direito aduaneiro similar ao das importações de aço e alumínio introduzido pelos EUA, ou seja, de 25%. A retaliação visa atingir uma série de produtos simbólicos norte-americanos com intuito de criar contestação interna à política proteccionista de Donald Trump, desde logo dentro do Partido Republicano. Por exemplo, elevando os direitos aduaneiros sobre o whiskey de bourbon, uma produção importante no Kentucky; e também sobre as motos Harley Davidson, empresa com sede em Milwaukee, no Wisconsin, afectando Estados dos líderes republicanos do Senado (Mitch McConnell) e Câmara dos Representantes (Paul Ryan).

6. Um aspecto que não tem tido a devida atenção é a fundamentação oficial do governo dos EUA para aplicação de novos direitos aduaneiros às importações de alumínio e aço. Não se trata de um usual caso de direitos anti-dumping, suportado pelo argumento de uma concorrência desleal de produtores estrangeiros. Trata-se de um caso configurado como sendo matéria de segurança nacional. Para o efeito, foi invocada a secção 232 do “Trade Expansion Act” de 1962. (Ver US Department of Commerce, “What You Need to Know About Section 232 Investigations and Tariffs”, 8/03/2018). Com base nessa legislação, podem ser investigados os efeitos das importações não só sobre a economia e emprego como sobre a segurança nacional. Se houver indícios de que as importações estão a prejudicar a segurança nacional, o Presidente norte-americano poderá usar sua autoridade “para ajustar as importações”, conforme necessário, inclusive através de direitos aduaneiros ou quotas de importação. Segundo os dados da investigação efectuada pelo Departamento de Comércio, as importações de aço dos EUA eram quase quatro vezes superiores às suas exportações. Quanto às importações de alumínio, tinham aumentado para 90% da procura total de alumínio primário. A conclusão do relatório do Departamento de Comércio foi que as quantidades e circunstâncias das importações de aço e alumínio “ameaçavam prejudicar a segurança nacional” a longo prazo das indústrias de aço e alumínio norte-americanas.

7. Para além do risco de desencadear uma guerra comercial, a aplicação de direitos aduaneiros por razões de segurança nacional é um precedente perigoso para a OMC? A questão é naturalmente importante. Embora os acordos da OMC incluam a possibilidade de restrições excepcionais ao comércio de certos produtos por razões de segurança nacional, até agora isso tem sido raramente utilizado. Assim, o risco para a OMC é o de que a abordagem dos EUA — a maior economia mundial — ao caso do aço e alumínio possa acentuar a tendência já existente para uso de argumentos de segurança nacional na protecção de sectores definidos estratégicos. A ascensão da China como um poder económico e militar é um dado que não pode ser ignorado neste contexto. Apesar de beneficiar largamente do comércio internacional, a China tem uma visão nacionalista da economia e da política. Vê o comércio internacional não só como fonte de bem-estar, mas como meio para obter vantagens estratégicas na luta pela supremacia mundial. Donald Trump está agora empenhado em responder, replicando, de forma simétrica, essa estratégia nacionalista. Para além de outras questões, pode danificar o comércio internacional e as relações com os aliados, como a Alemanha / União Europeia e o Canadá, por exemplo. Paradoxalmente, pelo menos no caso do aço, a China não é um dos dez maiores exportadores para os EUA. Já no caso do alumínio está entre os maiores exportadores. Em qualquer caso, o governo chinês já se sentiu afectado afirmando estar disposto e defender os interesses do seu país e do seu povo nesta guerra comercial.

8. Nas visões mais contestatárias como a de Yash Tandon, “o comércio é guerra!” (Ver Trade Is War. The West's War Against the World, OR Books, 2015). Para este economista do Uganda, a globalização imbuída de ideias liberais não é um caminho de progresso, nem de desenvolvimento. No entanto, como já referido, existe pelo menos um caso importante que contraria, de alguma forma, essa conclusão: a China. Mas o seu enorme sucesso não é o resultado que os norte-americanos e europeus antecipavam, pois, no início da globalização, viam-se, a si próprios, como os maiores ganhadores. O que aconteceu é que a entrada da China na OMC garantiu mercados abertos para as suas exportações e reforçou a legitimidade do seu modelo de capitalismo autoritário. (Ver “How the West got China wrong” in The Economist, 1/3/2018). Assim, estamos a assistir hoje a uma luta pelo poder mundial, a qual tem os seus protagonistas maiores nos EUA e na China, com várias ramificações e terrenos de confronto. Com os EUA acossados na primazia mundial económico-político-militar — e sentindo, pelo menos na visão de Donald Trump, também um aproveitamento comercial dos seus aliados —, o comércio tornou-se mais um terreno desse confronto. De facto, o comércio internacional não é apenas o factor de bem-estar elogiado pelos manuais de Economia. No mundo real, é também uma estratégia de poder, influência e prestígio, de empresas e Estados, que a globalização tornou ainda mais importante. Com ou sem Donald Trump, as guerras comerciais, disfarçadas ou abertas, serão cada vez mais uma componente da luta pelo poder mundial.

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