O grande duelo constitucional: quem escolhe o presidente da Comissão? - II

Na Europa, porque não há Estado, as instituições contam mesmo e cada uma joga a sua carta de geoestratégia constitucional.

1. Há quinze dias, prometi que voltaria ao tema da escolha do Presidente da Comissão – um pouco árido e difícil para não expertos, há que reconhecer. Já sabia que teria de fazer (e fiz) uma pausa para uma análise precoce e perfunctória dos resultados das eleições italianas. A saga transalpina continua, de resto, com as mais que previsíveis doses de imprevisibilidade. No domingo, o Corriere della Sera, falava, a propósito da futura solução governativa, de um verdadeiro jogo de matrioskas. Dentro de cada boneca (solução governativa), há outra cujos tamanho, forma e cores ninguém conhece. De cada vez que, em Roma, se abre uma matrioska, lá lhes sai outra (que, et pour cause, há-de albergar uma terceira). Fazendo uma adaptação da famosa frase do Evangelho de Mateus, “basta a cada dia a sua matrioska”. Eis porque é prudente esperar alguma clarificação e cumprir o prometido: voltar ao intrincado tema constitucional da designação do Presidente da Comissão.

 

 

 

2. Chegámos a ver que, em 2009, tinha havido um precedente – uma espécie de pré-história – de indicação de um candidato de um partido europeu (o PPE) ao cargo de Presidente da Comissão. Na altura, só o PPE fez isso, mas nenhuma consequência política ou jurídica foi tirada daí para o futuro. Em 2014, a história é outra e alimenta o debate que agora floresce nos corredores e nas arenas da politica europeia.

Os principais partidos europeus alteraram os seus estatutos para acolherem a figura do Spitzenkandidat. Em sintonia, criaram um modelo de primárias internas para fazer a respectiva selecção e, uma vez feita, apresentaram uma personalidade que deveria assumir o cargo de Presidente, no caso do respectivo partido ganhar as eleições. Foi assim que o PPE apoiou Juncker, os socialistas Schulz, os liberais Verhofstadt e os verdes Kelly. Entre os três primeiros, forjou-se um acordo informal no sentido de que, depois das eleições, cada um deles apoiaria o candidato que tivesse sido apresentado pela força política mais votada. Como o PPE venceu as eleições com maioria relativa, socialistas e liberais dispuseram-se imediatamente a apoiar Juncker. E fizeram saber ao Conselho Europeu, onde estão representados os chefes de executivo dos 28 Estados, apenas aprovariam e, em bloco, a designação de Juncker. O PE procurava fazer valer a sua força política e constitucional: pese embora não lhe compita a designação do nome a propor, como tem depois de o aprovar por maioria qualificada, dispõe de um autêntico direito de veto. Dir-se-ia que goza até de algo mais do que isso: goza de um poder de “veto e meio”, de uma capacidade de condicionamento do Conselho (sempre dependente da concreta correlação de forças no hemiciclo). Sumariamente, uma maioria qualificada tem o poder de rejeição sistemática dos nomes avançados pelo Conselho e pode portanto bloquear o funcionamento das instituições. Aqueles partidos centrais e assumidamente pró-europeus, cientes da sua posição de força, coligaram-se e resolveram jogar tudo numa espécie de “parlamentarização da Comissão”.

 

3. Importa pôr o destaque em que o Conselho, pelo seu lado, nunca reconheceu nem legitimou qualquer prerrogativa do PE. É interessante verificar que os chefes de executivo em nenhum momento abdicaram do princípio de que dispunham de uma competência amplamente livre e discricionária na designação do futuro Presidente da Comissão. É, aliás, deveras sintomático que deputados europeus e chefe e membros do executivo de cada país tivessem alinhamentos opostos. Se eram membros do PE entendiam que o Conselho estava vinculado – até juridicamente – à indicação feita pela maioria parlamentar europeia. Se eram membros de executivos pensavam de maneira diametralmente inversa: esta era uma prerrogativa do Conselho Europeu, à boa maneira da velha royal prerrogative britânica. Trata-se de uma pura e sã separação dos poderes entre legislativo e executivo, de que já não há quase pegada ou memória nos parlamentos nacionais. Na Europa, porque não há Estado, as instituições contam mesmo e cada uma joga a sua carta de geoestratégia constitucional. É bem certo que chefes de Estado e de governo participaram alegremente nas convenções e congressos dos partidos europeus que escolheram os Spitzenkandidaten. Mas fizeram-no com a displicência sobranceira e a ostensiva tolerância de quem acha que os partidos podem fazer o que quiserem, mas isso em nada vincula as instituições nem altera os Tratados.

 

4. A hostilidade a esta “imposição” do PE foi forte e, num primeiro momento, ainda houve líderes que excogitaram não propor Juncker, fugindo ao aparente ultimatum parlamentar. Era sabido que Cameron não queria o luxemburguês por o ter por demasiado federalista e que Órban, o primeiro-ministro húngaro, não lhe perdoava ter acalentado as investigações sobre o Estado de Direito, propulsionadas por Barroso e pela comissária Redding (esta também do Grã-ducado). Merkel, que não morria de amores por Juncker, e com o fundamento razoável de que era importante não indispor os britânicos (“poderiam um dia caminhar para o Brexit” – argumentava), quis tentar um outro nome. Mas David Cameron, com a retumbante falta de jeito que pautou toda a sua politica europeia, deu uma entrevista a dizer que o Reino Unido nunca aceitaria Juncker. O resultado foi imediato: Merkel, que queria fazer bons ofícios e dar uma lição ao PE (no que era acompanhada por muitos outros), não podia ficar refém de Cameron. Entre a escolha do presidente da Comissão caber ao PE ou incumbir ao primeiro-ministro britânico é absolutamente evidente que teria de prevalecer o PE. E assim foi eleito Juncker, o Spitzenkandidat do PPE, o que, dizem agora os parlamentares, criou um precedente constitucional. Afirmação que o Conselho esconjura com os dois pés e que, diz, subverte o equilíbrio constitucional e institucional dos Tratados. Com pausa ou sem pausa, temos de voltar ao tema. 

 

SIM. Paulo Portas. Ninguém diz, mas foi Portas quem venceu o Congresso. Foi ele que escolheu, inspirou e treinou muitos dos que agora surgem na primeira linha, criando escola e não secando o CDS.

 

NÃO. Steve Bannon. A ida do ideólogo e ex-colaborador de Trump ao Congresso da Frente Nacional mostra bem em que pé está a política nas democracias ocidentais, cada vez menos liberais.

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