Os 840 anos de um eterno colosso

O Mosteiro de Alcobaça está dotado de um potencial artístico que o transforma num autêntico compêndio de História da Arte.

No presente ano de 2018, decorrem os 840 anos do início da construção da Abadia Cisterciense de Alcobaça (1178-2018); uma data digna de ser notabilizada. Afinal, trata-se de um conjunto monumental que, no contexto europeu, constitui um dos mais notáveis e bem conservados exemplos da arquitectura cisterciense de feição bernardiana. É o primeiro edifício inteiramente gótico erguido em território português, com um programa arquitectónico e artístico bem marcado pelo pensamento e espiritualidade de São Bernardo de Claraval, o grande mentor da Ordem de Cister. É também importante salientar que na magnificente igreja abacial jazem os reais protagonistas da história de amor e tragédia que corre mundo, desde o século XIV, constituindo, muitas vezes, o incentivo principal para a entrada de milhares de pessoas no monumento. Uma história eternizada pela Arte. De facto, a mestria artística e a mensagem iconográfica evidenciadas nos sarcófagos transformam os túmulos de D. Pedro e de D. Inês de Castro em prodigiosos tesouros da escultura funerária medieval, ímpares em Portugal e na Europa. Não admira, pois, que esta abadia cisterciense integre a Lista do Património da Humanidade, desde 1989.

O Mosteiro de Alcobaça, erguido por ordem de D. Afonso Henriques, teve o seu início de obra em 1178. É digno de nota que um ano depois, em 1179, o Papa Alexandre III reconhecesse a nacionalidade portuguesa através da bula Manifestis Probatum. Como bem sabemos, a doação do extenso território de Alcobaça por D. Afonso Henriques a São Bernardo e à Ordem de Cister e, bem assim, a fundação do complexo monástico constituíram passos determinantes no caminho da ratificação da independência do reino de Portugal pela Santa Sé.

A estrutura arquitectónica da Abadia de Alcobaça reflecte a compatibilidade existente entre o pensamento ascético de São Bernardo de Claraval e as particularidades estéticas de harmonia, simplicidade, despojamento e luminosidade que qualificam a construção. Por isso, quando trilhamos o interior da igreja, deparamos com um espaço grandioso nas suas proporções, apresentando, contudo, a pedra desnuda e despojada de exuberância decorativa. Ora, neste ponto reside a excepcionalidade da Abadia de Alcobaça. A chave da compreensão e explicação da arquitectura cisterciense é o conhecimento da espiritualidade bernardiana. Se a organização espácio-funcional do complexo monástico reflecte os princípios da Regra de São Bento, já o seu programa arquitectónico e artístico exprime a doutrina de São Bernardo acerca das condições necessárias para que a vida monástica facilite ao homem uma verdadeira preparação para o dia do Juízo Final. Se o Abade de Claraval propugna que a caminhada para o conhecimento de Jesus Cristo seja realizada num edifício de arquitectura simples, harmoniosa e equilibrada nas suas formas, logicamente falamos da abadia como o espaço-arquétipo dos modelos de beleza e de perfeição divinas, destinado fundamentalmente a experienciar Jerusalém Celeste. Por conseguinte, não é de estranhar que os princípios fundamentais da “novidade cisterciense” — simplicidade, pureza, humildade e caridade — sejam igualmente os cânones que regem a arquitectura das abadias da Ordem. Assim, o rigor da observância da disciplina claustral é harmonizável com a austeridade aplicada no trabalho dos blocos de pedra; a pedra cisterciense é recta, quadrada, desnuda. Com efeito, trata-se de uma estética adequada a uma vida de conversão. Arriscamos a designá-la como a Estética da Ascese.

Em suma, sempre que o belíssimo portal gótico, rasgado na fachada setecentista do Mosteiro de Alcobaça, for transposto, convém saber que iniciamos uma jornada pela mundividência da Ordem de Cister e de São Bernardo de Claraval. Não obstante o programa arquitectónico do gótico inicial funcionar como elemento agregador de todo o complexo monástico medievo, esta bela viagem permite-nos igualmente observar um conjunto de outras gramáticas construtivas e decorativas desde o românico — presente na cabeceira da igreja — ao neoclássico, passando pelo manuelino, maneirismo, barroco, neogótico e rocaille. Em bom rigor, o Mosteiro de Alcobaça está dotado de um potencial artístico que o transforma num autêntico compêndio de História da Arte. Um lugar maravilhoso, iluminado pela espiritualidade e sabedoria cistercienses, onde podemos descobrir e apreender coisas novas a cada passeio que se repete no Claustro. Por conseguinte, os 840 anos do início da construção do Mosteiro de Alcobaça são, de facto, uma data a celebrar.       

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