A limpeza da floresta não pode ser contra as pessoas nem portadora de instabilidade e iniquidades sociais

O que é imposto assim a chofre, apos 12 anos de existência da lei, é impossível ser cumprido na totalidade e por todos os envolvidos, inclusive o próprio Estado.

Em 21/09/2017 foi publicado no PÚBLICO online um artigo de opinião em que defendi que a reforma da floresta não pode ser contra as pessoas. Hoje, defendo neste artigo que a limpeza das florestas também não pode ser contra as pessoas, pois tal como está a ser imposta será geradora de situações sociais complicadas pondo em causa a qualidade de vida de uma parte significativa da população. Idosos com rendimentos baixos e muito baixos, com evidentes limitações financeiras, físicas e motivacionais e incapazes de fazer frente às exigências de uma lei de 2006 que foi ignorada por todos, incluindo governos, autarquias e outras entidades públicas.

O que é imposto assim a chofre, apos 12 anos de existência da lei, é impossível ser cumprido na totalidade e por todos os envolvidos, inclusive o próprio Estado. Haverá quem não cumpra e vá (ou não vá) ser identificado. Haverá quem não possa cumprir e será (ou não será) identificado. Haverá quem possa cumprir e não cumpre e não será identificado. Haverá quem pague as coimas e quem as não pague. Haverá quem vá para tribunal. Haverá quem seja identificado e se esteja nas tintas para o que a seguir poderá acontecer. Haverá de tudo o que possamos imaginar e passível de acontecer.

O que a lei impõe ao próprio Estado também não pode ser cumprido. Não há capacidade instalada para tanta fiscalização nem para tanto processo que irá parar aos tribunais. Os eventuais custos para verificar o cumprimento da lei e fazer cumprir a lei serão mais elevados do que a própria limpeza dos terrenos que a lei impõe. Poderá tratar-se de uma absoluta irracionalidade. 

O que a lei impõe ao mercado e à sociedade portuguesa não pode ser cumprido por incapacidade de resposta, por falta de força braçal nos sapadores, nas empresas, nas associações, nas famílias e nos proprietários e por falta de meios no Estado para cumprir e fazer cumprir o que ela impõe. Têm razão as câmaras municipais quando referem não dispor de meios nem ser possível cumprir material e temporalmente o que o Governo impõe.

Tem razão o Governo que, face ao que se passou em 2017 com os incêndios, quer ver os terrenos limpos para diminuir o risco de incêndio. Tem legitimidade o mercado para, perante um pico de procura imposto administrativamente pelo Governo, impor valores proibitivos para limpeza dos terrenos e inflacionar o custo deste trabalho. É socialmente inaceitável que numa situação como esta se inflacionem os preços e se aproveitem da situação e das fragilidades das pessoas. Numa situação como esta todos têm culpa e todos têm razão e são todos responsáveis por ela, tendo ignorado a lei ao longo de 12 anos.

O país, de norte a sul, está inundado de imagens de “donuts” cartográficos que delimitam os aglomerados e as faixas de 100 metros em redor dos mesmos onde deverão ser efetuadas as limpezas. Muitos desses mapas contêm muitos erros. Por uma questão de prudência e de rapidez joga-se pelo seguro e definem-se, às vezes sem necessidade, faixas de gestão de combustível muito generosas, contudo impraticáveis e impossíveis de controlar e sem atender a muitos dos seus impactes sociais efetivos.

Quais os prédios que se localizam dentro da faixa dos 100 metros e quais os que se localizam a 101 metros? Num prédio dentro e fora da faixa como será definida a linha limite? Limpa-se só uma parte, ou o prédio todo? Com estes mapas os problemas e as consequências acima referidos resultantes da fiscalização serão ainda agravados.

Hoje, em 2018, face ao que aconteceu com os incêndios de 2017, existe na sociedade portuguesa uma maior consciência, individual e coletiva, para a imperiosidade de limpar as florestas por motivos de proteção civil. Todavia, dadas as circunstâncias que nos conduziram a esta situação, abandono dos territórios rurais pelas políticas públicas centrais e locais, desinteresse do mercado pelos terrenos florestais e consequente desvalorização destes que conduziram ao abandono dos terrenos pelos proprietários, entre outras sobejamente conhecidas, não é socialmente aceitável que se imponham medidas desta forma, quando à partida se sabe que elas serão impraticáveis e portadoras de instabilidade e iniquidades sociais. É preciso bom senso a gerir este assunto.

A reforma da floresta, que ainda não foi feita, deverá consagrar outro tipo de medidas. Os planos municipais de ordenamento do território, que orientam e controlam a edificação e consequentemente definem o que é aglomerado, é que deverão estabelecer, em articulação com os planos florestais e os planos de proteção civil, as faixas de gestão de combustível. Os Planos Diretores Municipais em vigor na sua maioria são anteriores a 1998. O Estado e as autarquias deverão adquirir terrenos florestais a preço justo a proprietários que os pretendam vender ou que sejam forçados a vender por falta de conservação e manutenção. Deverá ser possível aos proprietários renunciar à propriedade dos terrenos em favor do Estado ou das autarquias locais, que se responsabilizarão efetivamente pela sua limpeza e gestão, caso contrário poderão reverter a favor dos antigos proprietários. A limpeza dos terrenos florestais privados deverá ser estimulada por subsídios, de fácil acesso, e medidas fiscais. O Orçamento do Estado, a Lei das Finanças Locais e os fundos comunitários deverão estar orientados para este tipo de medidas e não o estão atualmente.

O processo que conduz à limpeza em concreto dos terrenos privados deverá ser uma tarefa laboriosa e de proximidade entre o poder político, a administração e as comunidades, que envolva ações no terreno de apoio financeiro e técnico, ações de fiscalização e monitorização, mas também ações de punição dos incumpridores.  

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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