O seu a seu dono

A opção tomada após os fogos de 2003 não foi um devaneio de uma elite urbana mas uma aposta respeitadora da realidade do mundo rural.

O Arq. Henrique Pereira dos Santos publicou neste jornal, no passado dia 27 de Fevereiro, um artigo de opinião intitulado “As elites e o mundo rural”, onde afirma que a opção de responsabilizar os proprietários pela “limpeza” das suas propriedades, depois dos fogos de 2003 e 2005, foi “fortemente influenciada pelo então ministro da Administração Interna” e que resultou de uma mentalidade de “elites sem a menor noção” do que é o mundo rural.

Porque a seriedade e independência do autor não o obrigam a conhecer ou recordar alguns factos pertinentes para a boa informação e julgamento dos leitores do PÚBLICO, aqui me atrevo a deixar alguns comentários e complementos factuais:

  • A opção legislativa do XV governo que é referida (após os fogos de 2003) continha o embrião da indispensável obrigação do Estado de assumir as suas próprias responsabilidades (que tão bem são apontadas no texto), daí ser o próprio Estado e não as autarquias a substituir-se aos privados quando tal se previa;
  • De facto, e simultaneamente com aquela opção, foi criado o Fundo Florestal Permanente (FFP), destinado, expressa e exclusivamente, a apoiar os produtores florestais nas suas acções de gestão (coercivas ou não) que fossem social e ambientalmente exigíveis e que não fossem economicamente viáveis;
  • Acontece que os sucessivos governos, a partir daí, têm usado o FFP como um “saco azul” para apoiar o próprio Estado. Compraram-se Títulos do Tesouro quando o país esteve à beira da bancarrota, pagaram-se alugueres de helicópteros, pagou-se à GNR a vigilância nos Postos de Vigia, pagaram-se os equipamentos e (parte dos) salários aos Sapadores Florestais, financiaram-se — generosamente, aliás — as autarquias para pagar os respectivos Gabinetes Florestais — mesmo a algumas que os não tinham! —, usou-se sistematicamente esse dinheiro para substituir as verbas do OE, nomeadamente as que deviam complementar as ajudas comunitárias e para os produtores florestais e para o fim para que fora criado... quase nada!

Ou seja, a opção tomada na reforma (verdadeiramente) estrutural que então se iniciou não foi um devaneio de uma elite urbana mas sim uma aposta holística, respeitadora da realidade do mundo rural:

  • Criou-se e mandou-se executar ao Instituto Superior de Agronomia o Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios (que o XVII governo veio a aprovar a custo, censurando o que nele não gostou);
  • Publicou-se pela primeira vez (DL n.º 156/2004, de 28 de Agosto) um Sistema Nacional de Prevenção e Protecção da Floresta Contra Incêndios, que o XVII governo revogou um ano e meio depois, dizendo que continha “erros” — nunca explicitados e que “não provara” (em 22 meses!) —, para o republicar maquilhado (em 28 de Junho de 2006) com obrigações tão absurdas como as de manter as copas das árvores afastadas quatro metros;
  • Criou-se, em 21 de Abril de 2004, a Agência para a Prevenção dos Incêndios Florestais (que encomendou — sem censuras — o citado estudo do ISA), que foi prontamente desmantelada também pelo XVII governo (para hoje ser “ressuscitada” — e bem — depois de quase década e meia na tumba);
  • Criou-se um grupo técnico que produziu as normas ainda hoje em vigor aplicáveis às redes primárias e secundárias de prevenção de fogos, etc., e coisas importantes como o Regime Fiscal Específico da Produção Florestal e o cadastro ficaram pelo caminho com a queda inopinada do Governo.

Tudo isto afinal para dizer que a opção de 2003/2004 (que nada teve a ver com os fogos de 2005) era séria, informada e tinha em linha de conta a realidade do mundo rural (embora, seguramente, não fosse perfeita) e para defender a equipa que então integrei com gosto e que foi liderada pelo então ministro da Agricultura, Armando Sevinate Pinto (técnico e agricultor distinto que chegou mesmo a ser enxovalhado quando um ministro da República se interrogou publicamente e pela primeira vez sobre a eficácia do sistema de combate que tínhamos e fomos tendo, e que já não está entre nós para se defender).

Tudo isto também merecia ter sido escrito no excelente texto de HPS, a que falta acrescentar a pergunta que se impõe: ao ministro da Agricultura, ao secretário de Estado das Florestas e ao director-geral dos Serviços Florestais do primeiro governo (o XVII) do Eng. José Sócrates (e faço notar que nesta lista de destinatários não incluo nem o actual primeiro-ministro, então ministro da Administração Interna, nem o seu secretário de Estado da Administração Interna, porque não foi deles que partiu a ideia ou a decisão de destruir deliberadamente a Reforma Estrutural do Sector Florestal de 2003/2004), há que perguntar se não se sentem (todos eles vivos, felizmente) responsáveis pelo que — por ignorância, vaidade e despeito — destruíram da reforma que encontraram e pelos eventos catastróficos a que todos fomos inexoravelmente conduzidos?

P.S.: Reconheço, apoio e aplaudo a determinação do primeiro-ministro (em quem não votei) e tiro-lhe o chapéu pela coragem que tem demonstrado em afrontar lobbies poderosos que conheci, conheço e denunciei nos locais próprios, não obstante a infeliz trapalhada da recentemente chamada Reforma Florestal D. Dinis II, apresentada como “salvadora” e precipitadamente aprovada no Parlamento (sob pressão desastrada do Sr. Presidente da República), quando foi afinal gizada numa lógica de “mais do mesmo”, sem uma só referência à questão dos incêndios florestais e muito antes da ocorrência das fatídicas catástrofes que agora se querem ver nunca mais repetidas.

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