Quando Khadafi quis anexar a Madeira

Esta história serve também para nos lembrar que Portugal pode ser considerado — embora apenas do ponto de vista geológico — um dos poucos países tricontinentais do mundo.

Diz-nos o Diário da Assembleia da República de há quarenta anos que por estes dias os deputados Furtado Fernandes (PSD), Marcelo Curto (PS) e Sousa Marques (PCP) discutiam animadamente as diferenças entre o sindicalismo reformista, o sindicalismo revolucionário e o anarco-sindicalismo. O presidente da sessão avisou com bonomia que a discussão estava a ficar muito teórica. O período antes da ordem do dia começou com algumas indicações da mesa sobre procedimentos protocolares relativos à visita do rei da Noruega, Olavo V, que dali a momentos receberia cumprimentos no Salão Nobre do Parlamento. E seguiu-se a apresentação de um voto de protesto do PS e do CDS, apoiado pelo PCP, PSD e pelo deputado da UDP Acácio Barreiros, e depois aprovado por unanimidade, “contra as declarações do presidente líbio Khadafi, exigindo, numa clara ingerência nos assuntos internos portugueses, a independência do arquipélago da Madeira”.

Espera aí — a independência da Madeira?! — Khadafi?

Que história é esta?

Posso explicar. Estávamos em fevereiro de 1978. Era primeiro-ministro Mário Soares, com o II Governo Constitucional, de coligação entre PS e CDS (durou sete meses, de janeiro a agosto). E, de repente, o país acordou para a notícia de que na reunião da Organização de Unidade Africana do dia 20 anterior, o líder líbio Muammar Khadafi fizera um discurso no qual defendeu a anexação para a OUA de todos os territórios africanos “sob ocupação”, incluindo, entre outras, a “colónia portuguesa” do arquipélago da Madeira.

“O imperialismo ocidental ficará furioso, porque exigimos a liberdade das nossas ilhas africanas que foram ocupadas pela Grã-Bretanha, França e Portugal.” Khadafi mencionou ainda a possibilidade de apoiar um movimento separatista no arquipélago das Açores, mas tendo em conta que este era muito longe de África não o incluiu nos planos de o juntar depois à OUA.

A OUA foi mais longe no que diz respeito às Canárias, tendo oferecido através do seu comité de libertação apoio logístico e financeiro ao MPAIAC, Movimento para a Independência do Arquipélago das Canárias. Como se imagina, os nossos vizinhos espanhóis não reagiram com moleza. O escândalo foi geral, da extrema-esquerda à extrema-direita. Um jornal titulou a toda a largura “INTOLERABLE”. Proclamou-se noutro uma pleonástica “unanimidade de todos”. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Marcelino Oreja, prometeu que as ilhas seriam “defendidas com todas as forças [de Espanha]”.

Em Portugal, a reação foi mais moderada. O PSD, pressionado pelo PSD-Madeira, apresentou também um voto de protesto (que não foi discutido na mesma sessão, porque o deputado Acácio Barreiros alegou que não tinha tido tempo para o ler). O PCP declarou que “a Madeira é território nacional” e acrescentou que o separatismo na Madeira e nos Açores “exprime bem o carácter antinacional do fascismo e da reação”. Mas globalmente, lendo os jornais da época, dá para perceber que a atitude nacional esteve entre desconcertada e fleumática.

Ainda assim, colocava-se a questão de decidir como reagir na cena internacional — competência partilhada com o Presidente da República, Ramalho Eanes, que também emitira, ao seu estilo, uma nota firme e seca sobre o assunto. O que fazer agora? Apresentação de queixa na ONU? Chamar os embaixadores da OUA para um protesto formal? Corte de relações? Para a escolha definitiva deve ter pesado sobretudo a vontade de encerrar o assunto sem chamar demasiado a atenção para ele.

E é por isso que podemos assinalar com patriótica vaidade como efeméride para ontem que no dia 27 de fevereiro de 1978 Portugal reagiu à última ameaça externa sobre a integridade do território nacional através de… uma nota à imprensa distribuída na ONU em Nova Iorque. “Portugal demonstrou após o 25 de Abril de 74 compreensão perante as legítimas aspirações dos povos africanos à total independência do seu continente”, dizia a nota. Ora, esse facto “outorga a Portugal o direito indiscutível de repudiar qualquer interferência nos seus assuntos internos, em especial quando vem acompanhada por ameaças do uso de força”.

E pronto. Os diplomatas portugueses em Nova Iorque deram o dia por bem acabado. Tanto quanto sei, a história ficou por aí. Trinta anos depois Khadafi chegou finalmente à Madeira, mas para instalar uma das suas empresas no offshore do arquipélago.

Além da curiosidade, esta história serve também para nos lembrar que, uma vez que a Madeira faz efetivamente parte da placa tectónica africana e as ilhas açorianas das Flores e do Corvo estão na placa norte-americana, Portugal pode ser considerado — embora apenas do ponto de vista geológico — um dos poucos países tricontinentais do mundo.

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