Uma actriz que quer o medo e a incerteza por perto

Fundadora da companhia Auéééu, vimo-la em Sopro, de Tiago Rodrigues, e em Esquecer, encenação de Jean Paul Bucchieri. Atraída por um teatro que acolha a vulnerabilidade, é uma actriz daquelas que mudam o jogo quando entram em cena.

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24 anos. No espaço de meses, em 2017, vimo-la em Sopro e em Esquecer. As suas passagens pelo palco eram merecedoras de muita coisa, mas não de esquecimento Rui Gaudêncio

Foi, é e será a voz de Cristina Vidal, ponto do Teatro Nacional Dona Maria II, a conversar com o director do teatro, Tiago Rodrigues, sobre a ideia de fazer um espectáculo que a colocasse no centro do palco e lhe roubasse a sua habitual palidez. Foi uma figura em corrida, durante mais de 20 minutos, em que o texto de Dimitris Dimitriádis em torno da vitória da morte sobre o homem lhe saía nos intervalos de uma respiração ofegante, num constante movimento circular de quem por mais que se afunde nas deambulações mentais do tema não consegue romper com o sentido de inescapável. No espaço de meses, em 2017, vimos Beatriz Brás em Sopro, de Tiago Rodrigues, e em Esquecer, de Dimitris Dimitriádis, encenação de Jean Paul Bucchieri, e as suas passagens pelo palco eram merecedoras de muita coisa, mas não de esquecimento.

Além de Sopro e de Esquecer, pouco mais consta do currículo de actriz de Beatriz Brás – aí sim, se esquecermos as suas participações em séries juvenis televisivas durante a adolescência. Mas o “pouco mais” que consta é, na verdade, o projecto ao qual se tem dedicado de forma mais continuada e que lhe garantiu o primeiro assomo de visibilidade. No último ano do curso da Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), Beatriz e outros oito alunos atiraram-se ao texto O Amor É Mais Frio que o Capital, de René Pollesch, e prepararam a fundação da companhia Auéééu Teatro – “o pior nome de sempre para uma companhia”, carimbou Rui Pina Coelho, professor do grupo na ESTC.

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Rui Gaudêncio

Falta Tinta Vermelha, assim se chamava esse exercício final em que o texto de Pollesch se cruzava com o guião de L’Amore, curta-metragem de Jean-Luc Godard, fixava já algumas das características essenciais do teatro dos Auéééu: a insistente intromissão da música nas suas criações e a permeabilidade a argumentos de cinema. De forma involuntária, Pollesch haveria de dar um decisivo empurrão na vida criativa do grupo ao impedir a reposição do espectáculo. “Recebemos uma cartinha a dizer que é proibido fazer aquele texto”, conta Beatriz. “O autor diz que a peça foi escrita num certo contexto, para aqueles actores, e não quer que se volte a fazer noutras situações.”

A resposta dos Auéééu fez-se sob a forma de interrogação – como é que se proíbe dizer palavras e a quem pertencem as palavras? – num novo espectáculo intitulado Tradição. A par desse mote, o grupo repetiu as duas referências basilares do seu primeiro trabalho conjunto: a Pollesch foram buscar a frase “é da tradição os actores levarem estalos” e pilharam criativamente o argumento de Alphaville, de Godard. A ligar as duas pontas, juntaram uma série de textos próprios. Estreado em Janeiro de 2016, na Rua das Gaivotas6, Tradição circulou o suficiente para se fazer notar e acabou por integrar o Ciclo Recém-Nascidos, do Teatro Nacional Dona Maria II, onde Tiago Rodrigues viu pela primeira vez Beatriz Brás. Foi quanto bastou para se aperceber que queria ter a seu lado aquela actriz que redefine quaisquer relações com o ambiente cénico assim que entra em palco.

Foi assim que Beatriz acabou chamada para uma audição para a composição do elenco de Sopro. E que se viu, numa das suas primeiras experiências teatrais, diante de um processo artístico pouco comum, mas em linha com uma fragilidade que a fascina no momento de montar um espectáculo. Seguindo o seu método habitual, Tiago Rodrigues escrevia o texto à medida que os ensaios decorriam, testando todos os dias as novas propostas que resultavam do trabalho conjunto com os actores. “Gosto muito de o Tiago se permitir essa vulnerabilidade, de não saber para onde a peça vai”, diz. “Acho que é um gesto de coragem e de confiança no desconhecido. Tanto na vida como no teatro parece-me importante largar o medo. Ou até mesmo dizer-lhe ‘Vem aqui para perto de mim’.” Na convicção de que só o inesperado para quem cria terá a capacidade de espelhar esse espanto nos espectadores.

Construção

Essa falta de controlo sobre o objecto final é um dos atractivos no trabalho com os Auéééu. Pouco dados a prosseguir a via do consenso – “nem todos temos de estar confortáveis; seguimos um movimento colectivo em que ora cedem uns, ora se afirmam outros, numa dança constante”, descreve –, Beatriz Brás confessa que “é um milagre” conseguirem fazer espectáculos. Porque é frequente não concordarem, e não é raro não se reconhecerem no sentido que se quer de uma determinada cena. O importante, garante a actriz, é que a companhia funcione como um espaço de escuta e um lugar em que a incerteza é bem-vinda.

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Beatriz Brás em Sopro, de Tiago Rodrigues CHRISTOPHE RAYNAUD DE LAGE

Formados em 2014, os Auéééu ensaiam numa antiga fábrica de betão armado a 30 minutos de Lisboa, adaptada para black box e rodeada de uma sucata e empresas de tractores. “Sentimos que estamos todos a construir coisas, ainda que absolutamente diferentes”, refere Beatriz sobre o local de encontro semanal da companhia. Em períodos como o actual, avolumam-se as tarefas de cada um dos nove elementos, entre produção, comunicação e um sem-fim de afazeres relativos à digressão da sua última criação, o segundo capítulo da trilogia 9 Anos Depois, a partir da Ilíada – após Tavira e Lisboa seguem-se Elvas (Cine-Teatro, 23 de Março), Porto (Confederação, 3 Maio), Teatro Sá de Miranda (5 Maio) e Montemor-o-Novo (Encontro Internacional de Marionetas, 31 Maio), graças ao apoio atribuído pela GDA.

É mais um capítulo de questionamentos que os Auéééu gostam de levar para palco, onde instalam a dúvida e, neste caso, reflectem sobre a presença dos deuses, da religiões e da tecnologia – como deífica, omnipresente – nas vidas de hoje, e em que o mote da Ilíada surge estilhaçado, sem qualquer obrigação de respeitar narrativas. “Apetecia-nos ler uma epopeia dos nossos antepassados que tivesse que ver com a relação do Homem com a guerra”, resume Beatriz. “Queríamos pensar sobre o que é estar em luta, em guerra connosco e com as adversidades que encontramos ao longo da vida.”

Aos 24 anos, gosta, aliás, que o teatro não fique no palco e siga consigo para lá dos bastidores. Em Esquecer, teve de entregar-se a “um medo muito presente” em si – o da mortalidade. “Fez-me pensar que mal tem sermos mortais. Porque estamos sempre a negar isso e não amamos essa condição?” Atirado para o público em passo de corrida, o texto de Dimitriádis tornava-se físico, ficava-lhe “no corpo, na pele, no suor, na saliva que começa a colar os lábios”. Com Sopro, que lhe ocupará boa parte da agenda de 2018 e 2019 – embora haja nova criação dos Auéééu prevista para o final do ano –, vai assumir o desafio de “perante a repetição ver o novo”. O mesmo texto vai acompanhá-la durante diferentes fases da sua vida. E isso obrigará a que o teatro como “espaço para parar e pensar” a leve a reposicionar-se sempre diante da peça e do mundo.

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