Até que ponto as alterações climáticas causam conflitos?

Uma equipa de cientistas quis saber se a relação entre as alterações climáticas e os conflitos estaria a ser bem estudada. Para isso, analisou vários artigos científicos de 1990 a 2017 e percebeu que os estudos tendem a centrar-se em locais que já têm mais conflitos violentos.

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Habitantes do Darfur que se foram abastecer de água fornecida por agências humanitárias Mohamed Nureldin Abdallah/Reuters

As alterações climáticas têm sido invocadas como uma das causas de conflitos. Por exemplo, em meados dos anos 2000, o então secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, afirmou que a crise humanitária no Darfur também estava a ser alimentada pelas alterações climáticas. Já em 2015, (quando era Presidente dos EUA) Barack Obama disse que a seca, a diminuição nas colheitas e o aumento dos preços dos alimentos ajudaram a impulsionar os primeiros conflitos na Síria, embora o clima não seja a causa de todas as guerras no mundo. Também estudos científicos têm relacionado alguns conflitos com as alterações climáticas. Mas será mesmo assim? Para responder a esta questão, uma equipa de cientistas analisou vários artigos científicos e concluiu que a ligação entre as alterações climáticas e os conflitos tem sido exagerada: há tendência para estudar países com mais violência ou locais que lhes são mais convenientes.

A equipa de cientistas, que contou com a participação de Tobias Ide, da Universidade de Melbourne (Austrália), fez uma “expedição” à base de dados bibliográfica Scopus (que tem citações e resumos de artigos científicos, livros e autos de conferências), e analisou investigação feita entre 1990 e 2017 através de uma revisão sistemática dessa literatura científica.

Quais os resultados expostos agora na revista científica Nature Climate Change? Primeiro, a equipa percebeu que África (77 vezes) é o continente mais mencionado, seguido pela Ásia (54) e depois pela Europa (7). Outros continentes que são vulneráveis às alterações climáticas (e com conflitos) quase não são mencionados, como a América do Sul (6) e a Oceânia (1). Depois, a nível das regiões do mundo, a África subsariana é a mais citada (44) e logo a seguir está o Médio Oriente (22). A nível dos países, o Quénia e o Sudão estão no topo (11), seguidos pelo Egipto, a Índia e a Síria.

“A literatura sobre alterações climáticas e conflitos tende a focar-se nos lugares que já tiveram a experiência de conflitos violentos, como a Síria e o Quénia”, diz ao PÚBLICO Tobias Ide. “Muitos países que são muito vulneráveis às alterações climáticas, mas comparativamente pacíficos, como o Bangladesh, as Honduras ou o Vietname, estão mal estudados. Assim como algumas regiões que receberam pouca atenção, porque há restrições aos dados e barreiras linguísticas para os investigadores ocidentais. A América Latina, que tem países vulneráveis como o Brasil, o México ou o Peru, é um bom exemplo disso.”

Tobias Ide reforça ainda: “O nosso estudo prova que há um enviesamento considerável nas amostras das investigações sobre o clima e os conflitos. Mostra que os sítios violentos são estudados com mais frequência, enquanto a elevada vulnerabilidade às alterações climáticas não conduz a um aumento da atenção da academia.” Os cientistas destacam ainda que há mais investigação nas antigas colónias britânicas. Afinal, têm o inglês como uma das suas línguas oficiais e tornam-se mais acessíveis. Os cientistas avisam no artigo científico que praticamente só analisaram estudos escritos em inglês. “As revistas de língua francesa ou espanhola poderão provavelmente ter um retrato diferente dos países e regiões mencionadas mais frequentemente.”

Mas é este o primeiro estudo a mostrar o “exagero” nesta relação entre clima e conflitos? “Já muitos estudos tinham especulado sobre isto, mas o nosso é de facto o primeiro o estudo empírico abrangente deste assunto, por isso também é o primeiro a encontrar uma amostra enviesada na investigação do clima e conflitos.”

Estudar casos de sucesso

Num comentário a este trabalho também na Nature Climate Change, Cullen Hendrix, da Universidade de Denver (EUA), destaca alguns exemplos que podem comprometer a investigação da ligação entre clima e conflitos: a seca que afecta a Síria também está presente nos países vizinhos como a Jordânia e o Líbano, que não têm o mesmo grau de violência; e países como o Bangladesh e o Haiti têm menos atenção dos investigadores e também estão “expostos” às alterações climáticas.

Tobias Ide diz-nos que há consequências nesta ligação exagerada. “Primeiro, a literatura transmite-nos a impressão de que a ligação entre conflitos e clima é mais prevalecente do que, de facto, é. Depois, quando nos focamos predominantemente nos casos violentos, aprendemos muito pouco sobre as adaptações pacíficas às alterações climáticas”, explica. “Por fim, a literatura pode acidentalmente enquadrar algumas regiões (como o Médio Oriente e a África subsariana) como naturalmente violentas porque é difícil discutir estratégias de adaptação pacíficas nestas regiões.”

Portanto, o que deve ser feito? “A investigação deve focar-se em casos de adaptação pacífica às alterações climáticas”, responde o cientista, exemplificando também que a Tanzânia e a Jordânia têm vivido secas severas e tido menos conflitos do que o Quénia e a Síria. “Estudar os casos de sucesso produzirá, provavelmente, visões mais relevantes para os decisores políticos.”

Com tudo isto, Tobias Ide salienta que este estudo não aponta se os estudos científicos estão correctos ou não, apenas refere que há um exagero e falhas na investigação científica nesta área como um todo. E acrescenta: “Nos últimos três ou quatro anos, temos tido um enorme progresso na área e há muitos estudos bons sobre o impacto dos défices de precipitação ou dos desastres naturais nos conflitos armados.” E até aponta um estudo de 2016 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences. “Tem casos de violência e de não violência, usa bases de dados recentes, incluindo a África e a Ásia, considera em que altura do ano ocorre uma seca e introduz factores como as relações de poder étnicas num dado país”, descreve. Mesmo assim, o cientista menciona uma falha: “Não aborda a falta de provas para outras regiões do mundo.”  

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