Os Lankum têm um poder muito grande, o de cantar estas canções

São quatro irlandeses a recriar de forma imponente velhas canções da tradição, mas, nelas, não é o passado que nos fala. Um presente que regressa no magnífico Between the Earth and Sky.

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Ao primeiro impacto, chocamos com uma massa sonora imensa, nuvem densa que nos envolve e que obscurece tudo à volta. A partir daquele momento e nos seis minutos seguintes, nada mais existe. Nada, a não ser o bordão que ocupa todo o espaço sonoro e aquela voz que parece saída da alvorada dos tempos, primeva e imponente: “What will we do if we have no money? / Oh, true lovers, what will we do then?”. Aquela é a voz de timbre assombrado de Radie Peat, entoando uma canção de origem incerta. O que ouvimos são os Lankum, quarteto irlandês que vasculha o cancioneiro da sua ilha (e além) para descobrir o que ficou, para cantar novamente o que o passado não matou, para recordar ao presente que a arrogância do esquecimento pode pagar-se caro. Daragh Lynch, fundador da banda, cita ao Ípsilon uma frase famosa de Frank Harte, cantor e pesquisador do cancioneiro irlandês falecido em 2005: “Aqueles que têm o poder escrevem a história, aqueles que sofrem compõem as canções”. Os Lankum cantam.

Between the Earth and Sky é o novo álbum da banda, o primeiro com novo baptismo. Enquanto estiveram confinados ao circuito de bares e às salas do circuito de música tradicional, chamaram-se Lynched. Porém, após a edição de Cold Old Fire, em 2014, o protagonismo que ganharam levou-os a mudar. Pensaram na possibilidade de um dia se verem em território americano e nas memórias dolorosas que o nome Lynched evocaria na comunidade afro-americana. Morreram os Lynched, nasceram os Lankum. Lankum? Sim, Lankum, nome do personagem principal de uma balada do cancioneiro irlandês, um vilão infanticida. “Talvez o natural seja haver em nós, humanos, uma atracção para histórias de sangue e de crime, como testemunhamos nas capas dos tablóides”, diz desde Dublin Daragh Lynch. Fundou a banda com o irmão Ian Lynch quando este regressou à Irlanda depois de uma temporada em Londres, onde integrou um squat e percorreu as ruas a tocar flautas e guitarras. “Começámos por fazer música onde o humor era predominante, numa estranha mistura de elementos tradicionais e punk”. A banda que ouvimos agora e onde encontramos, além dos irmãos Lynch, Radie Peat e Cormac Mac Diarmanda, vindos da comunidade de música tradicional, é bastante diferente.

Tocam concertina, harmónio e o bayan, um acordeão russo. Tocam gaitas-de-foles e flautas, tocam banjo, piano e guitarra. Harmonizam as vozes sobre a instrumentação e cantam a capella. E sim, há crime e sangue, tal como há angústia e esperança, como há vislumbres de luz e melancolia introspectiva. Há, acima de tudo, uma capacidade de trazer até nós, como corpos vivos, aqueles que habitam os versos antigos que cantam – isto enquanto, ao mesmo tempo, os Lankum tentam dar aos originais que assinam a mesma densidade que as velhas canções reinterpretadas. “Uma das razões pelas quais estas velhas canções são tão poderosas é terem sobrevivido à garimpagem do tempo. Centenas e centenas de canções vão sendo esquecidas ao longo dos anos. As que sobrevivem são as que tocam um ponto emotivo especial, as que têm as letras mais poderosas e as melhores melodias, as realmente relevantes e maleáveis”, defende Daragh.

Between the Earth and Sky tem título retirado a um verso de Willow garden, canção que viajou da Irlanda para os Apalaches americanos e que foi cantada pelos Dubliners ou por Nick Cave, história de um homem atormentado pela visão da faca que empunhava e que, por ganância, trespassou o corpo de uma mulher chamada Rose Connoly. É um álbum onde encontramos Peat Bog Soldiers, canção de protesto nascida na antecâmara do crime inominável do século XX: foi composta em 1933 por dois prisioneiros políticos no campo de concentração de Börgermoor, na fase inicial do terror nazi, e transformou-se em hino de resistência cantado pelos republicanos durante a Guerra Civil Espanhola ou pelos que combateram o nazismo na Segunda Guerra Mundial. Os Lankum cantam-na “a capella”, despida de qualquer adorno para além das quatro vozes que se unem para tornar mais pungente a melodia e a força dos versos. “É uma canção muito poderosa e cantámo-la sem acompanhamento por respeito [aos autores originais]”, explica Daragh. “É uma canção importante e continua a sê-lo, especialmente hoje em dia, com tanto que acontece no mundo estranhamente semelhante [ao período em que foi composta]. Há uma lição a retirar no que aconteceu há 70 anos. Hoje, cantar esta canção não é só uma homenagem. É também um alerta”.

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Between the Earth and Sky ganha-se como álbum inescapável neste início de ano discográfico – foi editado em Dezembro de 2017, mas a sua sombra pairará por 2018 – pela forma como, firmemente ancorado na música tradicional, integra magistralmente na sua genética outras linguagens. Ao longo da entrevista, Daragh Lynch fala-nos do seu gosto por Brian Eno e do interesse do irmão Ian no black metal escandinavo, e conta que Cormac e Radie são grandes apreciadores dos Neu! e do restante kraut rock. Tais referências não se manifestam, porém, sob a forma de uma qualquer música de fusão. Pelo contrário, evidenciam-se no cuidado posto em criar um verdadeiro universo sonoro que estas canções possam habitar.

É música como bordão encantatório constante, imponente, a que é impossível escapar. É música despojada na instrumentação, mas maximizada na produção. “Normalmente, não usamos em cada canção mais que um par de instrumentos e as vozes”, começa a explicar Daragh. Neste álbum, “pegámos no bordão das gaitas de foles ou do harmónio, passámo-los por compressores analógicos e o resultado foi levado, por exemplo, a uma igreja e tocado em colunas, de forma a ganhar um eco natural que foi introduzido novamente nas misturas com o objectivo de o tornarmos o mais presente e intenso possível”. Não por acaso, passaram seis meses às voltas das misturas do álbum - e valeu a pena cada dia gasto nelas. Não por acaso, Between the Earth and Sky é composto de canções que, à excepção de Peat bog soldiers, nunca se quedam abaixo dos cinco minutos de duração, pois a música dos Lankum desenvolve-se lentamente e pede tempo para nos enlearmos totalmente nela - e vale a pena cada minuto.

Este é o álbum da desarmante What will we do when we have no money e do alerta de Peat bog soldiers. É o álbum da trágica Willow garden e de Déanta in Éireann, uma das canções originais, que actualiza para o presente um cantar de emigração, tema de sempre da música irlandesa - em “Granite gaze”, outro original, tornam-se voz dos deserdados do insaciável progresso capitalista: “we traded lumps on narrow streets / can’t bite the hand when you’ve no teeth”.

Between the Earth and Sky é o álbum em que o passado regressa, não para nos atormentar, mas para nos guiar pelo presente. É o álbum de música antiga tornada matéria viva nas mãos sábias de quatro irlandeses talentosos. São os Lankum, e têm muito poder. O de cantar estas canções. 

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