História de um trauma em tempo de Carnaval

Desde há dez anos que grande parte do património de Lisboa tem vindo a ser transferido para a ATL.

Durante dez anos bem protestei e reclamei: acabei sempre vencida mas cada vez menos convencida. Confesso que fiquei com um trauma: vejo a sigla ATL sempre que oiço “transparência” e “investigação “. Uma vez que estas palavras têm estado na abertura de todos os noticiários, a visão começou a ser recorrente e transformou-se num pesadelo.

Vejamos: a ATL (Associação de Turismo de Lisboa) é uma associação de direito privado, isenta da tutela de qualquer entidade pública, liderada por uma Comissão Executiva presidida pelo presidente da Câmara de Lisboa. O diretor-geral (Dr. Vítor Costa) era o antigo vereador do Turismo — tem o cargo vitalício e, por sua morte ou impedimento, suceder-lhe-á a mulher que é, à data, subdiretora.

Acontece que, desde há dez anos, grande parte do património de Lisboa — financeiro e imobiliário — tem vindo a ser transferido para a ATL que, de agência de promoção de atividades turísticas, passou a receber rendas, conceder subconcessões, fazer lançamentos de adjudicação e fiscalização de empreitadas com tudo o que isso pode implicar (adjudicações diretas, prémios, trabalhos a mais, alterações de projetos, derrapagens, etc.).

Com efeito, toda a zona ribeirinha que o Porto de Lisboa transferiu para a câmara, transferiu-a a câmara para a ATL, o que significa que, pela primeira vez, toda esta vasta área depende da tutela de uma associação privada.

Para a ATL foram, também, transferidas grandes obras (Pavilhão Carlos Lopes, Estação Sul-Sudeste...), a última das quais é a conclusão do Palácio da Ajuda onde a câmara contribui, salvo erro, com 25 milhões de euros, sobre os quais deixa de ter qualquer controle. Os 20 milhões de euros do recém-criado Fundo de Desenvolvimento Turístico vão engrossar esta conta em roda livre.

No Carnaval, esta visão tomou um novo rumo: vejo o controlo da câmara, a fiscalização da Assembleia Municipal, os vistos do Tribunal de Contas e o Código de Contratação Pública mascarados de Lobo Mau a bufar à porta da casa de tijolo que é a ATL — onde os mal-intencionados poderão pensar que se esconde o saco azul do presidente da câmara.

Ainda pior: de todas as vezes que o presidente da câmara agenda reuniões onde se aprovam transferências de dezenas de milhões de euros, eu vejo-o do outro lado da porta, como presidente da casa de tijolos que é a ATL, a suspirar de alívio a ouvir o Lobo Mau bufar, bufar, bufar...

Também me vejo ao lado do Lobo Mau, que afinal é bom, vigia e controla o dinheiro dos meus impostos. Talvez este trauma desapareça se eu deixar de ver noticiários... Vou tentar, quem sabe!

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Sugerir correcção
Comentar