Os viúvos do segredo de justiça

Posso lamentar as constantes fugas de informação, mas parece-me que as suspeitas em causa são o tema fundamental, e ocupo os artigos a falar delas.

Vou escrever duas frases com as quais toda a gente concorda. 1) Estando em vigor o segredo de justiça, ele deve ser respeitado. 2) Todas as pessoas são iguais perante a lei, e por mais poderoso que alguém seja deve ser punido se tiver cometido algum crime. Não conheço ninguém que escreva artigos de opinião em Portugal, ou que faça comentários na televisão, que discorde da frase 1 ou da frase 2. As discordâncias vêm a seguir, naquilo a que em tempos já chamei “o lugar da adversativa” – onde é que cada um de nós, colunista de jornal ou comentador televisivo, coloca o seu “mas”, o seu “contudo”, o seu “no entanto”, o seu “não obstante”, o seu “porém”, o seu “todavia”.

A minha fórmula, em relação aos crimes de corrupção, costuma ser esta: 1) + conjunção adversativa + 2). Ou seja, posso lamentar as constantes fugas de informação, mas parece-me que as suspeitas em causa são o tema fundamental, e ocupo os artigos a falar delas. A fórmula de colunistas como Daniel Oliveira, Pedro Adão e Silva, Pedro Marques Lopes, muitas vezes Miguel Sousa Tavares, às vezes Ferreira Fernandes (mais dado a alegorias), costuma ser esta: 2) + conjunção adversativa + 1). Eles não têm dúvidas de que os mais poderosos devam ser punidos pelos seus crimes, mas relembram a cada passo a presunção de inocência (como se alguém quisesse acabar com ela), avisam-nos em tom paternal que um dia pode vir a acontecer connosco, e depois gastam aos seus artigos a discutir as quebras do segredo da justiça, os perigos da judicialização da vida pública, o conluio entre o Ministério Público e os jornalistas, a República dos Juízes que só existe nas suas cabeças, e as mais variadas formas de “calúnias”, de “pulhices” e de “devassas da vida privada”.

Existem muitas pessoas – algumas famosas, quase todas desagradáveis – que manifestam um grande amor à humanidade, em geral, mas depois odeiam cada homem em particular. Estes meus ilustres colegas amam a justiça, de um modo geral, mas odeiam cada processo judicial em particular. Ora, aquilo que me afasta deles não é apenas o lugar onde coloco a conjunção adversativa, mas também a fé na inteligência das pessoas e na capacidade de tirarem conclusões através do funcionamento do seu próprio cérebro. Os meus colegas colunistas parecem acreditar que o povo engole tudo o que lhe é servido pela comunicação social, e que qualquer pessoa que seja apresentada como suspeita na abertura de um Telejornal já está condenada no “tribunal da opinião pública”, seja qual for a consistência dos indícios – daí que as chamadas “fugas selectivas” sejam um crime tão bárbaro, que mancha a reputação dos suspeitos para toda a eternidade. Ora, eu tenho dois nomes para contrariar este pobre argumento: Isaltino Morais e Mário Centeno.

A eleição de Isaltino Morais para mais um mandato à frente da Câmara de Oeiras é a prova de que em Portugal há reputações que não se sujam nem com condenações em tribunal, quanto mais com meras suspeitas. E o recém-arquivado caso Centeno demonstra que o tão estupidificado povo sabe reconhecer uma suspeita absurda quando a vê – quem levou justa pancada foi o Ministério Público, não o ministro das Finanças benfiquista. Perante isto, como justificar a obsessão de tantos colunistas em relação ao segredo de justiça? A minha tese é esta: para quem ainda está a fazer o luto da Operação Marquês tudo serve para descredibilizar a instituição que descredibilizou as suas opiniões sobre a honorabilidade de José Sócrates.

 

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