Comédia estúpida, fútil e subversiva

A história de Doug Kenney e da National Lampoon, a revista de humor norte-americana que Kenney criou com Henry Beard em 1970 e gerou um império, é contada em A Futile and Stupid Gesture, um filme do Netflix realizado por David Wain. Está disponível desde sexta-feira.

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Will Forte e Domhnall Gleeson como Doug Kenney e Henry Beard em A Futile and Stupid Gesture DR

A meio de Caddyshack (em Portugal, O Clube dos Malandrecos), o filme de Harold Ramis de 1980, Doug Kenney, que produziu e co-escreveu o filme, pode ser visto no fundo de uma cena num restaurante a partilhar cocaína, que lhe é trazida por um empregado numa bandeja, com uma mulher. É sobre esse mesmo Kenney, que foi o fundador da revista National Lampoon, que em 1970 trouxe subversão e perigo à comédia e à sátira norte-americana e influenciou praticamente tudo o que veio depois, que versa A Futile and Stupid Gesture, ou Um Gesto Fútil e Estúpido, em português.

Uma adaptação de A Futile and Stupid Gesture: How Doug Kenney and National Lampoon Changed Comedy Forever, livro de Josh Karp escrito em 2006 sobre Kenney e a revista, o filme, que teve estreia no festival de Sundance este mês, está disponível no Netflix desde sexta-feira. É um biopic hilariante, mas com alguma pungência e muito de dramático, mesmo que quase sempre que esteja perto da profundidade subverta tudo com uma piada, tal como as pessoas que são retratadas. E não inclui a participação de Kenney como figurante em Caddyshack, apesar de retratar a rodagem do filme, mas inclui muitos outros episódios que ilustram quem o humorista e aqueles que o rodearam foram e o legado que deixaram. Tal como aquela vez em que alguém enviou dinamite para a redacção da revista, endereçada a Michael O'Donoghue, escritor da Lampoon interpretado por Tom Lennon, e este não entrou em pânico.

Kenney, a quem é dada vida por Will Forte, que foi do elenco de Saturday Night Live e hoje é a estrela de The Last Man on Earth, com a dose certa de comédia e drama – talento de Forte muito bem explorado por Alexander Payne em Nebraska, de 2013 –, fundou a National Lampoon a partir da Harvard Lampoon, uma revista estudantil que existe desde o século XIX em Harvard, a universidade onde estudou. Foi lá que se cruzou com Henry Beard, parceiro que complementava a sua comédia na sua perfeição e dava alguma ordem e organização à selvajaria de Kenney. 

A Futile and Stupid Gesture é também a história dos dois, da amizade e colaboração entre eles. Beard é interpretado pelo britânico Domhnall Gleeson, filho de Brendan Gleeson e parte da corrente trilogia de Star Wars, e vemos, no filme, os dois a conhecerem-se na universidade, a trabalharem juntos na revista universitária e depois a rumarem a Nova Iorque para, sem muitas esperanças, fundarem um império cómico. 

A história é a da pouco provável ascensão e a inevitável queda da National Lampoon, que no auge deu origem a um espectáculo teatral (Lemmings), um programa de rádio, e vários filmes, a começar em Animal House (A República dos Cucos), co-escrito por Kenney, e a acabar em filmes ainda hoje licenciados com o nome, mas sem qualquer ligação à revista ou o espírito original. E das frustrações de Kenney, que viu muitos dos seus colaboradores, fossem escritores ou actores, a serem pescados por Lorne Michaels para Saturday Night Live, e nunca conseguiu sentir-se satisfeito com o sucesso que atingiu, nem com a pressão de estar constantemente a tentar ultrapassar-se a ele próprio.

É tudo contado por pessoas que sabem do que estão a falar. A realização está a cargo de David Wain, que desde o início dos anos 1990 tem estado envolvido em alguns dos mais importantes e influentes empreendimentos do humor norte-americano, de The State a Stella, passando por Wet Hot American Summer. Wain falou ao PÚBLICO em Agosto aquando da estreia de Wet Hot American Summer: Ten Years Later. Sobre a influência que a National Lampoon teve nele, disse: "A própria revista não estava no meu radar quando estava a crescer, mas tudo o que ela influenciou directamente (Saturday Night Live, Animal HouseCaddyshack, etc.) era tudo para mim. Infiltrou-se no meu cérebro permanentemente e moldou-me, se bem que seja difícil definir exactamente como. É uma atitude, um sentido de diversão, de subversão."

Se bem que seja muitas vezes meta-referencial, goze com as convenções dos biopics e tenha piadas por todos os cantos, o filme não deixa de ser bastante sério na forma como retrata Kenney – o que o torna algo diferente dos outros trabalhos de Wain. Até porque nem partiu da cabeça do humorista: o guião é de John Aboud e Michael Colton, ex-jornalistas que andaram em Harvard, trabalharam na Harvard Lampoon e criaram, no início dos anos 2000, a sua própria revista de humor (se bem que online): Modern Humorist.

Para contarem a vida de Kenney e a existência da sua Lampoon, a equipa criou um dispositivo narrativo em que Martin Mull, numa versão mais velha de Doug Kenney, é o narrador. Se não souber nada sobre o cómico e quiser manter a surpresa até ver o filme, não leia o resto deste parágrafo. Poucos meses após Caddyshack, dado a depressões e dúvidas e não contente nem com o resultado final do filme nem com a sua recepção, e a ver a ascensão de comédias feitas por pessoas que não ele, tal como Aeroplano, Kenney caiu de um penhasco no Havai e morreu. Tinha 33 anos, tal como o seu colaborador John Belushi ou Jesus Cristo. Não há certezas sobre o que aconteceu – Harold Ramis, numa frase que aparece no filme, comentou que provavelmente o humorista terá caído enquanto procurava um lugar de onde se atirar.

Wain não é a única pessoa do filme que já esteve envolvido em comédias influentes. Por exemplo, Matt Walsh, que faz de Matty Simmons, o publisher da revista, além do papel em Veep, é um dos fundadores da trupe/escola/rede de teatros de comédia de improviso Upright Citizens Brigade, de onde saíram muitos dos nomes mais consistentes da comédia americana actual. Martin Mull fazia álbuns de comédia musical e, no final dos anos 1970, era a estrela de Fernwood 2 Night (mais tarde America 2 Night), um falso talk show televisivo criado por Norman Lear (é a inspiração de Between Two Ferns, de Zach Galifianakis). Mull cruzou-se com as pessoas retratadas no filme e foi amigo de algumas delas. Não é o único membro do elenco com ligações: Joel McHale, por exemplo, faz de Chevy Chase, amigo e colaborador de Doug Kenney, e trabalhou com o próprio Chase – de forma por vezes antagónica – na sitcom Community. E a maioria das pessoas ainda vivas que são retratadas no filme colaboraram com a produção.

O filme não se coíbe de comentar o sexismo e racismo que existiam não só na National Lampoon, é descrita como "um clube de rapazes" (e basta olhar para algumas capas e artigos para perceber por quê), mas na comédia da altura. Especialmente através de Anne Beatts, a única escritora de comédia dos tempos iniciais da revista e uma das primeiras argumentistas de Saturday Night Live, a quem aqui é dada vida pela sempre excelente Natasha Lyonne, de Orange is the New Black. Em dada altura do filme, a revista deixa de publicar artigos de Beatts. Também mostra o quão pouco bom Kenney foi para as mulheres da sua vida, com Emmy Rossum de Shameless a fazer de Kathryn Walker, actriz com quem o humorista esteve até morrer, e Camille Guaty, de Prison Break, como Alex Garcia-Mata, a primeira mulher do protagonista. O filme não pinta nenhuma destas pessoas dos tempos da revista como um herói, mesmo que admita que "toda a gente era muito mais sexista e racista do que parece ser", quando lista elementos que foram mudados da realidade para a ficção através de texto que desfila pelo ecrã demasiado rápido para ler sem pôr no pause.

Há uma cena, quando estão a ser apresentados os escritores que Kenney e Beard escolheram para a revista, em aparece o cómico Chris Redd, agora em Saturday Night Live, a perguntar se não havia escritores de comédia negros, acompanhado por uma mulher que pergunta se também só havia uma mulher. Mull responde-lhes que eram tempos diferentes e que devia haver, certamente, mas eles não estavam preocupados em procurar. Ou seja, o filme demonstra gratidão pelo legado de Kenney, e glorifica-o, mas faz isso com uma sensibilidade mais actual. Reconhece que hoje já não poderia, nem deveria, ser assim.

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