Obsessões pianísticas na Gulbenkian

Salvo raras excepções, os programas afastam-se pouco do repertório canónico.

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Daniil Trifonov Dario Acosta

O piano tem ocupado um lugar dominante nas programações da Fundação Gulbenkian, mas na presente temporada a dose foi ainda mais reforçada através do ciclo Pianomania!, a decorrer até 26 de Janeiro. Boa parte dos maiores pianistas mundiais têm passado ao longo dos anos pelo Grande Auditório e é sem dúvida um privilégio poder ouvi-los, mas esse predomínio pianístico, assente nas enormes potencialidades do instrumento e herdeiro da própria história do concerto como evento e do modelo do recital a solo, com raízes na cultura musical oitocentista e depois cristalizado no século XX, constitui também uma receita de sucesso garantido para encher salas. Acresce que, salvo raras excepções, os programas se afastam pouco do repertório canónico. Em paralelo com a reincidência pianística é porém de louvar a aposta desta temporada na música de câmara com o Festival dos Quartetos de Cordas, que irá ter lugar entre 27 e 29 de Janeiro.

O ciclo Pianomania! iniciou-se simbolicamente  com um exemplo fora do comum em termos de longevidade de carreira — o lendário Menahem Pressler, que continua a dar concertos aos 94 anos!  — e tem combinado a actuação de pianistas veteranas como Elisabeth Leonskaja e Mitsuko Uchida, com intérpretes das novas gerações de grande projeção mediática como é o caso de Daniil Trifonov, Beatrice Rana e Yuja Wang (esta última tocará o Concerto nº5 de Prokofiev nos dias 25 e 26). Proporcionou ainda a estreia do Concerto para dois Pianos de Mário Laginha, na interpretação do próprio e de Pedro Burmester e actividades paralelas como filmes, documentários e a performance de Vexations, de Erik Satie, por Joana Gama ao longo de 14 horas.

No dia 19, o premiado pianista russo Daniil Trifonov realizou uma impetuosa interpretação do Concerto para Piano e Orquestra op. 54, de Schumann, dando voz a uma concepção que enfatizou a veia dramática da obra e apostou em veementes contrastes dinâmicos. A dimensão lírica e poética ficou assim mais na sombra, apesar de alguns sugestivos efeitos nas passagens mais intimistas. Trifonov é um intérprete de forte carisma, sonoridade poderosa  e portentosa destreza técnica, que mantém vivo o interesse do discurso musical através de uma energia constante que deixa o sempre ouvinte alerta e despertou grande entusiasmo do público. O restante programa, dedicado à música finlandesa, seduziu através das quase realistas paisagens sonoras de Canticus Articus (Concerto para Pássaros e Orquestra), de Einojuhani Rautavaara (1928-2016), objecto de uma transparente prestação da Orquestra Gulbenkian em estreita interacção com a fita magnética (com material pré-gravado recolhido em vários locais do Círculo Polar Ártico), sob a direcção de Hannu Lintu. Com três andamentos (O pântanoMelancolia e Cisnes em Migração), esta obra de 1972 apresenta uma sucessão de texturas que fazem mergulhar o ouvinte no universo da natureza e para as quais contribuem peculiares efeitos instrumentais que geram um jogo de ambiguidade entre a fita magnética e a componente instrumental. Depois do intervalo, a Sinfonia nº2, op. 43, de Sibelius, saiu valorizada através da profunda compreensão da obra demonstrada pelo maestro e por uma esmerada prestação da orquestra.

No domingo, foi a vez de Mitsuko Uchida proporcionar uma imersão total em Schubert, um compositor chave na sua carreira, que a pianista continua a explorar com devoção, ao ponto de ter iniciado em 2017 um projecto de dois anos em torno de doze das suas Sonatas para Piano. Em Lisboa tocou duas obras extremamente ambiciosas do ponto de vista técnico, estético e intelectual, que ostentam uma linguagem imaginativa (por vezes quase experimental)  como é o caso da Sonata em Dó menor, D. 958, e da Sonata em Sol Maior, D. 894. Entre ambas ouviu-se a mais luminosa e jovial  Sonata em Lá Maior, D. 664, na qual Uchida mostrou um cristalino cantabile, fluente agilidade e inspiração poética. Em contraste, na restantes não se coibiu de acentuar o lado mais misterioso e sombrio do compositor, nem mesmo de arriscar uma abordagem mais agreste no caso da D. 958, através de ataques incisivos e uma sonoridade menos polida. Como encore, a pianista deu a ouvir uma das Pequenas Peças para Piano op. 19, de Schoenberg, recordando que é também uma ilustre intérprete deste compositor.

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