A globalização é boa para as sociedades abertas?

Pode uma sociedade aberta transformar-se numa sociedade fechada precisamente por ter estado exposta à globalização, em particular a fluxos migratórios de massas e/ou a ideias contrárias aos seus valores? A questão não é apenas teórica, nem absurda.

1. Parece uma evidência que a globalização é benéfica para as sociedades abertas, com os seus fluxos de mercadorias, financeiros ou de tecnologia, mas também de pessoas e de ideias. No entanto, como ocorre com muitas outras realidades sociais humanas, é demasiado simplista ver o impacto da globalização nas sociedades abertas apenas sob uma determinada perspectiva. É verdade que a globalização tende a levar, de alguma forma, à abertura de uma sociedade. Mas pode, também, originar reacções adversas, ou seja, de fechamento desta, quer por um sentimento defensivo, ou proteccionista, quer por outro tipo de razões ideológicas. O impacto depende, também, do que a globalização traz, do exterior, às sociedades abertas e da maneira como isso é percebido pela maioria da população dessas próprias sociedades. Essa abertura à globalização, nomeadamente uma mais livre circulação de mercadorias, pessoas e ideias, é percebida como enriquecedora, em termos económicos e sociais, ou, pelo contrário, como trazendo perdas de bem-estar e uma fonte de insegurança e de tensões devido a valores em rota de colisão?

2. A reflexão sobre o que separa as sociedades abertas e sociedades fechadas, em termos das características, valores e visões do mundo que lhe estão subjacentes, tem a sua origem na obra do filósofo francês dos finais do século XIX e primeira metade do século XX, Henri Bergson, especialmente em Les deux sources de la morale et de la religion / As duas Fontes da Moral e da Religião (1932). Para Henri Bergson, a sociedade fechada é aquela onde os seus membros são fundamentalmente indiferentes ao resto da humanidade. Nela prevalece uma atitude de desconfiança e mais ou menos belicosa face ao estrangeiro. Pelas suas próprias características, a sociedade fechada está predisposta para atacar ou se defender, face ao que percepciona como ameaças externas. Em profundo contraste, a sociedade aberta é aquela que abraça, por princípio, a humanidade inteira, pelo menos em termos de modelo ideal, o qual aponta para uma sociedade cosmopolita. É algo sonhado, de vez em quando, por algumas “almas de elite” como notava Henri Bergson nos anos 1930. Na altura em que Bergson escreveu, a Europa e o mundo não caminhavam para uma era de abertura, pluralismo e cosmopolitismo, mas de sociedades fechadas e totalitarismos.

3. Nos anos 1940, já num contexto profundamente marcado pelos totalitarismos nazi e estalinista, bem como pela luta ideológica entre a democracia liberal e o socialismo-comunista, Karl Popper, um britânico de origem austríaca, deu novos e aprofundados contornos ao conceito de sociedade aberta. Em The Open Society and Its Enemies / A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos (1945), traçou a oposição entre sociedades fechadas e sociedades abertas. Nas últimas, o governo é responsável perante os cidadãos e pode ser afastado por vontade destes, sem revoluções ou recurso à força. São sociedade não-autoritárias, sem a pretensão de impor uma versão única da realidade, ou modelo de vida aos cidadãos, sendo possível exprimir livremente diferentes pontos de vista. Cada cidadão tem a possibilidade de formar a sua própria opinião sobre a realidade, o que implica liberdade de expressão e instituições que a favoreçam. Quanto às sociedades fechadas, são caracterizadas pela importância esmagadora do colectivo e sua sobreposição face à individualidade. Nelas, a dissidência é objecto de censura e punição. O colectivismo de raízes étnicas, religiosas, de classe ou nacionalistas sobrepõe-se à individualidade do ser humano, não deixando espaço à liberdade e responsabilidade pessoal. Para Karl Popper, o arquétipo de sociedade fechada do século XX era a sociedade moldada por princípios ideológicos marxistas, que este considerava dogmáticos e imbuídos da falácia intelectual do “socialismo científico”.

4. As ideias de Karl Popper tiveram grande ressonância entre a elite intelectual e política ocidental nos tempos da Guerra-Fria. Afinal, o seu trabalho deu munições na guerra de ideias contra as ideologias totalitárias em geral e o socialismo-comunista em particular. Nesse mesmo período, agora na literatura, O Estrangeiro de Albert Camus, publicado em 1942, poderá ser também interpretado como contendo uma crítica às sociedades fechadas e à repressão da individualidade dissidente das convenções sociais dominantes. Meursault, personagem central do livro, personifica, de alguma forma, o tipo de comportamentos que as sociedades abertas devem tolerar, não reprimir. Devido ao seu estilo de vida, sentia-se (e era visto) como estrangeiro na sociedade onde vivia, a Argélia colonial francesa da época entre as duas guerras. Meursault habitava nas margens desta e não partilhava de muitas das suas convenções. No memorável livro de Albert Camus a dissidência e o sentimento de estrangeiro são simbolizados pelo homem que não chora no funeral da mãe.

5. Hoje o mundo é outro e o combate ideológico da Guerra-Fria perdeu sentido. Fundamentalmente é a globalização, com os seus benefícios, mas também malefícios, que polariza grande parte do debate político-ideológico. Isto não significa que a oposição entre sociedades abertas e sociedades fechadas seja irrelevante, mas o problema adquiriu contornos que não existiam na época de Bergson, Camus e Popper. Agora são os da relação de uma sociedade com as populações oriundas do mundo exterior a esta. Neste segundo sentido, a questão adquire uma particular relevância no mundo globalizado em que vivemos, o qual propicia fluxos migratórios de massas. Uma sociedade aberta deve, por princípio, ser aberta a todos os que nela pacificamente queiram entrar e permanecer, seja como migrantes económicos, refugiados ou exilados? À primeira vista, e em coerência com os valores estruturantes de uma sociedade aberta, a resposta é um inequívoco sim. É essa a resposta típica da actual elite globalizada, seja por altruístas razões humanitárias e ideais cosmopolitas, seja por bem mais interesseiras razões de ganho com uma mão-de-obra abundante, tendencialmente barata e sempre em renovação.

6. Pode uma sociedade aberta transformar-se numa sociedade fechada precisamente por ter estado exposta à globalização, em particular a fluxos migratórios de massas e/ou a ideias contrárias aos seus valores? A questão não é apenas teórica, nem absurda. As instituições e valores de uma sociedade aberta que, por natureza, é democrática, dependem do apoio da maioria da população. A globalização traz dois problemas sérios para as sociedades abertas os quais se alimentam reciprocamente. Um primeiro, é o de provocar uma reacção à globalização de tipo proteccionista, de encerramento de uma sociedade sobre si própria, oriunda normalmente das populações nativas que se sentem perdedoras da globalização. No pior cenário, este sentimento pode abrir caminho a uma qualquer forma de autoritarismo. Um segundo problema resulta do facto de a maioria das novas populações chegadas às sociedades abertas terem origem em sociedades fechadas. Vêm tipicamente de sociedades tradicionalistas-colectivistas onde, por razões profundas de valores religiosos e práticas sociais, está impregnado o quadro mental adverso ao pluralismo e à individualidade. Está assim em rota de colisão com os valores plurais de uma sociedade aberta, onde a liberdade de opinião, política, de estilos de vida e de orientação sexual têm o seu espaço garantido face à inexistência de um modelo único de cidadania e de um colectivo opressor. Mas esses valores podem passar de maioritários a minoritários, se perderem a adesão da maioria da população. Assim, o paradoxo é que a abertura ao mundo globalizado pode ter como consequência, ainda que indesejada, uma sociedade aberta deixar de o ser. Esperemos que não seja esse o futuro.

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