Os Pérolas Negras que saíram do terremoto

O que começou como um projecto humanitário após a tragédia de 2010 que vitimou mais de 200 mil pessoas no Haiti já rendeu frutos no futebol brasileiro.

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No Pérolas Negras não há só haitianos — há um venezuelano e a ideia é juntar refugiados de outros países Viva Rio
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De mochila às costas e depois de uma longa viagem desde a sua aldeia, com várias horas em boleia e muitos quilómetros sozinho a pé, Frandy Pierre bateu à porta da Academia Pérolas Negras. Era noite, já não estava lá ninguém, a não ser Rafael Novaes Dias, que por lá tinha ficado até tarde. “Queria uma oportunidade. Não o consegui mandar embora. Fez os testes e passou”, recorda Rafael Novaes, um treinador que estava no Haiti a trabalhar no projecto de futebol da ONG Viva Rio. Esse miúdo acabaria por se tornar num símbolo maior de algo que começou como um projecto humanitário nos escombros do terremoto de 2010, e que evoluiu para uma equipa de com um título de campeão no Brasil à primeira tentativa.

Num universo futebolístico tão vasto como é o brasileiro, o Pérolas Negras é uma história de sobrevivência no meio da tragédia. “Mudou a vida de muita gente, deu um norte a meninos que iriam para as ruas, para a violência dos gangs… Se não houvesse este projecto, muito deles tinham-se perdido”, diz ao PÚBLICO Rafael Novaes Dias, que até há poucas semanas esteve ligado ao projecto Pérolas Negras, desde as suas bases humanitárias até ao salto para o futebol profissional que culminou com a conquista, no final de 2017 e com Novaes como treinador, do título na Série C do campeonato carioca, a quarta divisão do futebol do Rio de Janeiro.

Depois do terremoto em Janeiro de 2010 que vitimou mais de 200 mil pessoas no Haiti, Novaes foi um dos treinadores responsáveis pela criação de academias de futebol na nação caribenha, que já era uma das mais pobres do mundo antes da tragédia. Com o pretexto desportivo, a Viva Rio percorreu o Haiti de Norte a Sul para fazer treinos de captação para meninos e meninas de várias idades ao mesmo tempo que construía infra-estruturas básicas para se jogar futebol. “Fizemos uma academia onde eles moravam lá a tempo inteiro e estudavam lá. Muitos destes meninos sofriam de malnutrição, não tinham nada na vida, tinham perdido os pais... Foi um trabalho de alto rendimento, alto nível mesmo, e também de nível social. O projecto foi crescendo e até a federação chamou-nos para fazer uma parceria local com as selecções jovens”, conta Rafael Novaes.

O Pérolas Negras acabou por ultrapassar as fronteiras do projecto social porque estes miúdos, para além do sonho do futebol, tinham talento, e, seis anos depois dos primeiros passos no Haiti, transformou-se em algo mais. Foi construída uma academia em Paty de Alferes, uma povoação a pouco mais de 100 quilómetros do Rio de Janeiro, e os frutos do trabalho ficaram à vista logo em 2016 com boas exibições na Copa São Paulo, um torneio aberto a equipas jovens de todo o Brasil. No ano seguinte, inscreveram-se na federação carioca e conquistaram o direito de participar num campeonato profissional, beneficiando de uma lei que atribuía aos jogadores haitianos o estatuto de refugiados, não contando, por isso, como estrangeiros.

“Por que não fazer uma ponte aérea? No Brasil teriam mais oportunidades que no Haiti. Os meninos vieram para cá. Há muitos estudando, alguns já têm namorada cá, alguns querem constituir família cá, e fazem o que mais gostam que é jogar futebol”, conta o treinador. Logo na primeira época, o Pérolas Negras foi campeão da Série C, com a melhor defesa e com a equipa mais disciplinada. Frandy Pierre, o miúdo que apareceu sozinho à porta da academia no Haiti, está nesta equipa – é o lateral-direito e recebe um ordenado, enviando, como os outros, cerca de 70 por cento do que ganha para a família no Haiti – onde também estão vários jogadores brasileiros, uma mistura da qual todos beneficiaram, acrescenta Rafael Novaes. A ideia é juntar no Pérolas Negras refugiados de outros países, como a Síria, estando já na equipa um jogador que veio da Venezuela.

O Pérolas Negras só perdeu um jogo (o primeiro) e acabou a época com a melhor defesa e com o estatuto de equipa mais disciplinada. “Ninguém acreditava muito em nós, mas acabámos por ser uma grande surpresa para todos. Jogámos sempre um futebol bonito e isto coroou um trabalho que vinha sendo feito desde 2011. Tínhamos sempre muita gente a ver os nossos jogos porque as pessoas abraçaram o nosso projecto”, conta o treinador com orgulho, acrescentando que muitos dos jogadores que passaram pelo Pérolas Negras já foram recrutados por clubes brasileiros, dos EUA e outros jogam futebol em clubes haitianos – e alguns já andaram pelas selecções do Haiti.

Nem todos, conta o treinador, tiveram uma história feliz. Rafael Novaes fala de um guarda-redes com quem trabalhou no Haiti que foi vítima da violência, decapitado numa rua de Port-au-Prince, “uma história triste, um menino que foi para o lado errado”. “Mas quase todos os que passaram pela academia tiveram uma direcção. Muito poucos foram os que deixaram de jogar”, refere o treinador, que, com todos os sucessos, foi dispensado pelos responsáveis do projecto sem saber bem porquê. “Foi uma decisão do presidente e fiquei surpreso. Disseram que não era alguém com meu perfil que o projecto precisava. Respeito a decisão, mas não a entendo”, diz este treinador mineiro que chegou a jogar nas camadas jovens de um dos “grandes” do Rio, o Fluminense. “Foi uma história muito bonita, mas agora, bola para a frente”.

* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos. Ouça também o podcast

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