Denúncias de racismo nas cadeias vão passar a ser registadas

Serviços Prisionais estão a estudar forma de ter registo próprio de denúncias de racismo que até agora ficavam diluídas noutras ocorrências. SOS Racismo tem recebido várias relatos de presos em Vale dos Judeus.

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Paulo Pimenta

Sucedem-se nos últimos meses as denúncias à SOS Racismo sobre o Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus, em Alcoentre, distrito de Lisboa. A Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) não tem dados sobre discriminação racial. Admite que há referências diluídas no registo de infracções mais graves, ainda que poucas, e anuncia que está a estudar uma forma de isolar essa informação para que haja estatística sobre denúncias de racismo nas prisões.

Os relatos começaram a chegar no final do Verão. E o dirigente associativo José Falcão notou que tinham “uma característica comum: vinham todas de afrodescendentes ou de imigrantes de origem africana”. Remeteu-as para os media, apelando a que “se tomem medidas para que os culpados da xenofobia, do racismo e da violação dos mais elementares direitos humanos sejam punidos”.

As denúncias assumem contornos muito diversos. Não entrega de encomendas, qualidade dos serviços de estomatologia, valor pago pelo trabalho feito na prisão, comportamento de guardas e de chefias, por exemplo. Algumas evocam racismo. 

“Desarrumaram tudo, sujaram a roupa com café, [fizeram] provocações [a] ver se o recluso tomava uma conduta agressiva”, lê-se, por exemplo, numa denúncia sobre uma suposta rusga feita às três da manhã. “A pessoa citada, [...], no dia 27 de Novembro foi alvo de implicância e abuso de poder”, lê-se noutra sobre uma suposta toma de medicação no gabinete de um chefe de ala. "Seria bom que fosse feito um inquérito aos reclusos desta cadeia para se perceber o racismo acumulado", lê-se noutra, mais abrangente.  

Os relatos enviados à SOS Racismo também chegaram à DGRSP. “Esta direcção-geral toma nota, regista e averigua, mormente através do seu Serviço de Auditoria e Inspecção, todas as denúncias de maus tratos a reclusos e/ou de outros comportamentos irregulares, mesmo quando estas nos chegam de forma anónima ou subscritas por cidadãos relativamente aos quais não existe qualquer registo de passagem pelo sistema prisional”, refere Semedo Moreira, director do Serviços de Organização, Planeamento e Relações Externas. “Sempre que as queixas ou o resultado das averiguações indiciam a prática de crimes, os factos são comunicados ao Ministério Público.”

Neste caso concreto, afiança, “parte substantiva das denúncias” é feita sob um nome que não consta dos registos prisionais. “Não obstante os reclusos queixosos e susceptíveis de identificação terem um percurso prisional marcado por actos de indisciplina quer para com trabalhadores quer para com companheiros de reclusão, as suas queixas têm sido e estão a ser objecto de averiguação e acompanhamento por parte do Estabelecimento Prisional, do Serviço de Auditoria e Inspecção e desta direcção-geral e da Inspecção-Geral dos Serviços de Justiça”, garante.

Três queixas já foram arquivadas

Segundo aquela mesma fonte, três queixas já foram arquivadas. Uma relativa a buscas a um recluso, outra a propósito de uma exposição de reclusos sobre remunerações, outra sobre a consulta de estomatologia.

A propósito deste último assunto, começa por assegurar: “Não há registo de qualquer queixa respeitante ao facto de alguém ter ido a uma consulta para tratar um dente e lhe terem arrancado dois”. Essa denúncia, mesmo assim, deu origem a uma "inspecção surpresa por parte da Inspecção-Geral dos Serviços de Justiça que conclui não haver qualquer irregularidade”. O próprio gabinete de estomatologia foi objecto de inspecção e daí resultou apenas a ordem para instalar uma torneira e uma luz de presença.

Há denúncias concretas de xenofobia e racismo?, insiste-se. “Recolhida informação, junto do Serviço de Auditoria e Inspecção e para os anos 2016 e 2017, sobre o número de queixas por discriminação racial entre trabalhadores e reclusos, entre reclusos e destes para com trabalhadores, concluiu-se que as escassas referências a discriminação racial surgem integradas/misturadas em contextos disciplinares mais graves, sendo estas infracções que surgem no registo do processo”, responde.

“Mesmo tendo-se presente que estas referências são estatisticamente despiciendas, procurar-se-á no futuro proceder a um registo que permita isolar o tema no contexto de processos mais abrangentes”, anuncia. Que quer isto dizer? “Estamos a procurar uma solução que permite vir a isolar, registar e contabilizar esta problemática no contexto em que nos tem surgido, ou seja, diluída em processos mais abrangentes e que são registados em função das infracções que lhes dão origem.”

O racismo tem estado na ordem do dia. E a justiça é uma das áreas em xeque. O Governo e o Instituto Nacional de Estatística estão mesmo a procurar uma forma de incluir nos Censos de 2021 uma questão sobre a origem étnico-racial para melhorar a informação sobre as minorias presentes no país. A Constituição não permite recolher tais dados, como a Organização das Nações Unidas tem recomendado a Portugal que faça. 

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