O sortido rico dos Melech Mechaya em Lisboa e no Porto

Ultrapassada uma “crise existencial”, os Melech Mechaya fizeram o seu álbum mais rico em altura de 10º aniversário. Aurora é apresentado a 27 e 29, em Lisboa e no Porto, com os convidados Noiserv e Filipe Melo.

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Quando surgiram há dez anos, os Melech Mechaya pareciam uma estimulante mas passageira excentricidade. Cinco tipos portuguesíssimos a quererem tocar música instrumental klezmer (de tradição judaica) e apostados em montar um ambiente de celebração em cada concerto. Sem casamentos nem bar mitzvahs por onde expandir a sua missão musical, afirmavam-se sobretudo como seguidores de grupos como os norte-americanos Klezmatics. Aos poucos, no entanto, ao mesmo tempo que crescia a sua reputação nacional e internacional de banda apostada em levar uma música festiva para palco e criar momentos de celebração colectiva, os álbuns do grupo iam acentuando uma dependência cada vez menos do reportório tradicional do género, compensada por uma maior incidência em originais que tanto deviam ao mais puro klezmer como a músicas das mais variadas geografias.

Ainda assim, os cinco não estavam exactamente preparados para o choque que foi o início do período de composição para o novo Aurora. Depois de terem acumulado quilómetros a tocar Gente Estranha (2014), chegaram a uma certa “saturação do espectáculo” que estavam a apresentar, admite Miguel Veríssimo, clarinetista do grupo. “Fazíamos os concertos com muita alegria, tudo corria muito bem, mas sentíamos falta de qualquer coisa.” Ao começarem a juntar as composições para o disco que havia de assinalar o 10º aniversário, os Melech Mechaya começaram então a desconfiar de si mesmos. “Estávamos a fazer músicas bastante diferentes, mais melancólicas e contemplativas”, descreve. Entraram, assim, num período de crise existencial e foi preciso algum tempo para fazerem as pazes com a ideia de que já não eram a mesma bandat de Budja Ba (2009).

Foi só nessa altura, quando aceitaram a transformação que se operara de forma involuntária, que as novas composições começaram a jorrar e ultrapassaram, em definitivo, o bloqueio que lhes estremecera a confiança. A partir daí, impuseram-se como regra o objectivo de fazer o melhor disco possível. Parecerá um fito demasiado vulgar e corriqueiro – afinal, não é sempre isso que acontece? Mas aquilo que passava pela cabeça dos Melech era um pouco diferente do habitual. “Pensámos que se amanhã houver uma catástrofe e formos lembrados por este disco, tem mesmo de ser um disco que nos orgulha.”

O plano para alcançar esse fim passou por concentrar as gravações no próprio estúdio da banda, onde havia tempo para testar, experimentar e limar quantas soluções lhes parecessem necessárias até encontrar a versão perfeita para cada tema. Foi assim que despontaram influências que, não sendo novas na sonoridade do quinteto, até agora apenas se tinham manifestado com timidez – “alguns toques do jazz, do flamenco, do fado e outras músicas assim”, concretiza Miguel Veríssimo. E exemplifica com Cirrus nimbus, “muito jazzístico e bossa nova, mas que talvez soe mais a Debussy”, ou Boom, “um pequeno alien na discografia” dos Melech Mechaya, aproximada do formato canção graças à participação vocal de Noiserv, a navegar algures na proximidade do grupo Beirut – o título de trabalho era Leão oculto, por os recordar tanto Rodrigo Leão quanto Danças Ocultas.

Também a participação do pianista Filipe Melo no tema título acentua a deriva para as zonas mais jazzísticas e aparentadas das bandas sonoras cunhadas pelos compositores italianos (Nino Rota e Ennio Morricone), no assumido desenvolvimento de uma imagem de bar decadente – de empregado a limpar copos e a suturar golpes de lâminas furtivas – entregue a um fim de noite sem qualquer vislumbre de redenção. No caso da cantora andaluza La Mari, do grupo flamenco-electrónico Chambao, “o ambiente meio espanhol” de Un puente acabou por ditar o convite a uma voz que lhes permitisse abordar uma “abordagem desempoeirada” a um tema permeável ao flamenco.

Os palcos para a festa

Tendo assumido como característica fundamental da sua música a tal capacidade de lançar a festa junto de qualquer lugar por onde passem, os Melech Mechaya “sempre tiveram algum medo” dos ambientes que, finalmente, se permitem explorar em Aurora. “Na primeira parte da nossa carreira”, confirma Miguel Veríssimo, “sempre que tocávamos uma música mais calma ao vivo ficávamos todos um pouco nervosos, a pensar que as pessoas já não iam dançar. Queríamos que o público saísse dos concertos radiante.”

O clarinetista está consciente de que este disco “será mais difícil ou até mesmo impossível de dançar” – talvez se adeque apenas a “ballet contemporâneo”, graceja. Com menor ou maior humor, a verdade é que as apresentações dos Melech, ultrapassado esse medo, ganharam em diversidade de registos, obrigando a gerir as dinâmicas do espectáculo, ao invés de começarem logo no máximo da festa e não se permitirem desacelerar ou perder energia pelo caminho.

Quando começaram, há dez anos, diz o músico, eram “jovens de 20 e poucos anos, imberbes e solteiros”, tomados por uma constante necessidade de explosão. Agora, como o poderemos comprovar no Teatro Tivoli, Lisboa, a 27, e na Casa da Música, Porto, a 29 – com as presença dos convidados Noiserv e Filipe Melo –, os tempos são outros, a sua música adquiriu uma enorme riqueza de nuances e já não há olhares de pânico ou angústia quando algum tema não deixa o público num frenesim dançante. Até porque, garantem, o destino será sempre o da libertação final; e os momentos de explosão passaram, na verdade, a ser mais explosivos.

 

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