A turistificação e a Região do Grande Sul

É, no mínimo, surpreendente que 30 anos depois não haja pensamento político digno desse nome sobre a conexão do Alentejo e Algarve.

A região do Algarve vive hoje um ciclo de “turismo total”, uma verdadeira bolha turística. O turismo é um fator fundamental de desenvolvimento regional, mas é, também, muito sensível às variações do ciclo geopolítico e geoeconómico. Está, por isso, criada uma oportunidade para discutir a diversificação da sua base económica. Sim, porque é na fase alta de um ciclo que se devem discutir os problemas da fase baixa do ciclo. E a fase baixa do ciclo não deixará de surgir, mais tarde ou mais cedo. Os efeitos externos, positivos e negativos, de uma bolha turística são conhecidos, e eles são tanto mais excessivos quanto mais estreita for a base económica da região. Todavia, se estivermos avisados e tomarmos as medidas cautelares apropriadas, é perfeitamente possível moderar e regular esses efeitos externos. Vejamos alguns riscos envolvidos na formação desta bolha e, depois, a diversificação da base económica regional, em particular, por via da formação de uma Região do Grande Sul.

Os riscos envolvidos na formação de uma “bolha turística”. Os factos recentes demonstram que há uma bolha turística que coexiste com um nível elevado de risco geopolítico e geoeconómico. Toda a fronteira europeia está hoje envolvida num “anel de fogo” que pode explodir em qualquer momento. Sabemos, também, que o turismo é muito volátil e sensível à variação do risco. Neste sentido, é preciso estarmos avisados em relação ao seguinte:

  • Há um risco de “turistificação” se o fluxo turístico estreitar mais a base económica já existente, via turismo intensivo, e se a “economia do Algarve” for progressivamente substituída pelos “eventos do Algarve”,
  • Há um risco de “turistificação” se a cultura turística intensiva condicionar o desenvolvimento de outros sectores, impedindo a reconversão da base económica regional,
  • Há um risco de “turistificação” se a região atrair “investimentos predadores” em busca de retorno rápido, ao mesmo tempo que desvaloriza outros ativos regionais,
  • Há um risco de “precarização” do mercado de trabalho e da vida local, se quase tudo girar à volta do turismo e se o emprego estruturado for substituído pelo trabalho desestruturado e precário num mercado regional cada vez mais desregulado;
  • Há um risco de “gentrificação” dos centros antigos de vilas e cidades, se houver um excesso de ludificação e patrimonialização dessas zonas que conduza a uma pressão imobiliária inusitada sobre os respetivos moradores, em particular, os mais idosos e desprotegidos,
  • Há um risco de “turistificação” se, por via de uma ludificação excessiva, o Algarve se transformar numa plataforma low cost de eventos turísticos e culturais massificados, com pouco valor acrescentado,
  • Há um risco de “turistificação” se se verificar um consumo excessivo de recursos públicos e, em especial, um consumo de recursos hídricos que pode pôr em causa o abastecimento de água às populações e agricultura (as guerras da água),
  • Há um risco geopolítico, no plano da segurança interna e coletiva, em especial na linha de fronteira proveniente do Magrebe Ocidental, o que pode implicar a tomada de medidas restritivas e, mesmo, a suspensão da liberdade de circulação de pessoas por períodos determinados.

A diversificação da base económica, a “Região do Grande Sul”. Não é fácil falar de diversificação da base económica regional quando quase tudo gira à volta de uma bolha turística. A cadeia de valor está do lado do turismo, mas, porque todos sabemos como acabam as bolhas turísticas, é nossa obrigação fazer alguns alertas à navegação. A diversificação da base económica regional pode ser interna ao sector do turismo, por diferenciação das suas atividades e/ou externa ao sector, por complementaridade e agregação com outras atividades e territórios.

No que diz respeito à diversificação externa, há, em primeiro lugar, duas ideias-força que importaria capitalizar: a primeira, a cooperação inter-regional entre o Algarve e o Alentejo, o “Grande Sul”, para desenvolver as inúmeras complementaridades funcionais entre as duas regiões, e a segunda, associada à primeira, a promoção da “Euro-região AAA” e o “Grande Corredor Intermetropolitano” que liga as áreas metropolitanas de Lisboa e Sevilha. Estes dois espaços geoeconómicos terão um crescimento apreciável no próximo futuro e rasgarão horizontes muito amplos para as três regiões envolvidas (Alentejo, Algarve, Andaluzia), não apenas pelas economias de aglomeração e a multi-escalaridade que introduzem, mas, também, pela mutação que provocam no reposicionamento dos investimentos externos mais relevantes, seja o turismo, o mar, o agroalimentar, as energias, a “produção de água”, para referir apenas os principais.

Em segundo lugar, a “Região do Grande Sul” estará, seguramente, muito ligada às atividades marítimas e marinhas. Bastará lembrar a contiguidade dos dois litorais, o porto de Sines, o aeroporto de Beja e os dois centros de investigação da Universidade do Algarve nestas áreas para alimentar fundadamente esta esperança positiva. O alargamento da nossa plataforma marítima será, igualmente, uma ocasião para aumentar os recursos públicos na direção da economia do mar. Um programa comum de mitigação e adaptação às alterações climáticas seria também uma atribuição fundamental da Região do Grande Sul.

Em terceiro lugar, a diversificação externa terá obrigatoriamente de passar pelos novos empreendimentos da economia digital. Uma região cosmopolita só pode ser uma região inteligente e criativa. Na “Região do Grande Sul”, as universidades de Évora e do Algarve deverão criar um “ecossistema digital inteligente” como infraestrutura fundamental para a “smartificação” do Grande Sul e um grande projeto de investigação e desenvolvimento peninsular e transfronteiriço para o lançamento de uma linha de startups na economia do mar, do turismo, do agroalimentar, das energias e da água, das alterações climáticas, da cultura e recreio. Este é, também, o tempo dos territórios inteligentes e criativos (TIC) da era das tecnologias da informação e comunicação (TIC). Basta que sejamos exemplares na reabilitação urbana e no património, na economia verde e circular (em especial nos usos da água). Que sejamos a sede de várias plataformas tecnológicas colaborativas para os espaços ibero-americano, ibero-mediterrânico e ibero-africano nas áreas da economia do mar, do turismo, do agroalimentar, da economia verde, da investigação e desenvolvimento na biologia marinha, da cultura e recreio. Que ofereçamos o exemplo de uma “2.ª ruralidade”, mais cosmopolita e criativa, com mais cidade no campo e mais campo na cidade.

Nota Final. É, no mínimo, surpreendente que se fale mais em cooperação transfronteiriça do que em cooperação inter-regional e que 30 anos depois não haja pensamento político digno desse nome sobre a conexão das duas regiões do Grande Sul de Portugal. Há longo tempo prisioneiras do seu próprio conservadorismo regional, as duas regiões, que são cidades médias europeias de 400 e 500 mil habitantes e mais de metade do território nacional, não têm sequer um milhão de habitantes e elegem apenas 16 deputados. Este é, porém, um momento único para pensar a geoeconomia destas duas regiões de forma mais articulada e ambiciosa. Devido às economias de escala, aglomeração e complementaridade, o Alentejo e o Algarve têm uma enorme margem de crescimento à sua frente. Se formos capazes de prolongar o ciclo turístico durante a próxima década, moderando e regulando os seus efeitos mais críticos, existem condições favoráveis para que o “Grande Sul” cresça demograficamente e economicamente durante o próximo ciclo de programação pós-2020. Apesar da sub-representação política da Região do Grande Sul de Portugal não há nenhuma fatalidade que impeça tal liberdade.

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