Portugal condenado pela primeira vez por violar direito à vida

Viúva de vítima mortal de negligência médica enfrentou sozinha o Estado. Juiz português do Tribunal dos Direitos do Homem diz que a lei continua a ficar à porta dos hospitais.

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Marido de Isabel Fernandes foi sujeito a uma cirurgia para extrair pólipos nasais no hospital de Gaia Adriano Miranda

É a primeira vez que Portugal é condenado de forma definitiva no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) por violar o direito à vida, assegura o advogado Ricardo Sá Fernandes. O caso remonta a 1997 e tem uma heroína: uma mulher que enfrentou sozinha o Estado português, levando o caso ao TEDH, apesar de não falar francês ou inglês nem ter conhecimentos jurídicos.

Foi em Novembro de 1997 que o marido de Isabel Fernandes foi sujeito a uma cirurgia para extrair pólipos nasais no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia. A operação decorreu sem incidentes e ele foi para casa no dia seguinte. Mas começou a sentir fortes dores de cabeça e foi às urgências do centro hospitalar, onde lhe receitaram tranquilizantes. Mais tarde diagnosticaram-lhe uma meningite bacteriana e acabou por sucumbir a uma septicemia a 8 de Março de 1998 no Hospital de Santo António, no Porto.

A viúva não se conformou, apesar de as suas queixas terem começado por não surtir resultado. Dois relatórios da Inspecção-Geral da Saúde concluíram que o doente tinha sido tratado de forma correcta. Isabel Fernandes contestou e, na sequência de novas averiguações, o mesmo organismo veio dizer que um dos médicos que tratou o paciente “não agiu com a prudência e zelo que se impunha”, tendo sido alvo de um processo disciplinar.

Ricardo Sá Fernandes só surgiu no caso em 2016, já o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem lhe tinha dado razão -  apesar de a viúva não falar inglês nem francês e também não ter conhecimentos jurídicos. Mas foi ela quem sozinha apresentou queixa, sem ter sequer advogado, descreve Sá Fernandes: “Foi uma comovente luta solitária.”

No final de 2015, os juízes de Estrasburgo condenam o Estado português ao pagamento de uma indemnização de 39 mil euros, por danos morais. Portugal recorre para o plenário do mesmo tribunal, e só nesta fase a queixosa foi obrigada a constituir advogado. A decisão do plenário foi conhecida nesta terça-feira: uma nova condenação da qual já não é possível recorrer, muito embora num montante inferior ao inicialmente fixado. A violação ao direito à vida motivada por falhas no sistema hospitalar vão afinal valer apenas 23 mil euros. “No fundo, mataram-lhe o marido”, considera Sá Fernandes.

Vítima passou por "sofrimento horrendo"

O caso arrastou-se nove anos, 11 meses e 25 dias nos tribunais administrativos portugueses. O juiz português do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Paulo Pinto de Albuquerque não ficou satisfeito com a decisão: acha que os magistrados de Estrasburgo deviam ter ido mais longe na sua condenação, focada apenas em aspectos formais do processo. “É indescritível o horrendo sofrimento por que passou este homem jovem e saudável”, observa, para relatar em seguida como um manto de silêncio se abateu sobre a tragédia por parte das entidades com responsabilidades na área da saúde.

“Houve uma época na Europa em que a lei não entrava nem nas prisões nem nos quartéis. Em que guardas e oficiais eram deuses intocáveis, enquanto soldados e prisioneiros eram sujeitos insignificantes. Infelizmente, essa época ainda não terminou nos hospitais”, acusa. Paulo Pinto de Albuquerque entende que o Tribunal dos Direitos do Homem perdeu, com este caso, mais uma oportunidade de mostrar que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos não pode ficar à porta das unidades de saúde.

O jurista critica a excessiva deferência da maioria dos seus colegas para com os interesses governamentais e diz mesmo que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ficou preso na armadilha da sua própria irrelevância, limitando-se a uma actuação meramente retórica quando lhe são dados a analisar casos deste tipo. O desinvestimento estatal na segurança social faz perigar o direito aos cuidados de saúde nos Estados-membros da União Europeia, avisa o magistrado. 

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