Os Açores querem que a maré do turismo suba mas não acabe em tsunami

O caminho para o arquipélago obter a certificação de destino sustentável começou agora. O turismo ganha com isso. Mas, sobretudo, ganha o planeta. Ou seja, nós.

Foto
Manuel Roberto

O café era uma coisa muito lá de casa. As mulheres faziam colchas, ofereciam um cafezinho aos clientes e recebiam em troca os mexericos da terra. A dada altura, os cafezeiros plantados nas traseiras eram tantos e davam tanto fruto que não havia gente que bebesse tudo. Para dar vazão, abriu-se um café na garagem. O sítio não está identificado à entrada, só lá vai quem conhece. Mas os homens são animais faladores, não fazem segredo do que é bom, e o único café de Fajã dos Vimes, na ilha açoriana de São Jorge, ganhou fama. Primeiro entre as 74 almas daquele lugar, depois entre os ilhéus e os caminheiros, por fim entre os turistas estrangeiros. Havia excesso de café, agora começa a não dar para a encomenda.

Dina Nunes ri-se nervosamente. Sabe que o café da Fajã dos Vimes chegou a uma encruzilhada. A terra e o clima abençoaram a família com mais de 500 pés de cafezeiro, uma herança construída ao longo de décadas – já a avó de Dina lhe contava como era bom o cheiro a café torrado na sua meninice. Apesar de o Café Nunes ter aberto ao público em 1995, pela mão de Manuel Nunes, pai de Dina, as coisas não mudaram muito. “Fazemos a torra do café em casa, numa frigideira e com uma colher de pau até atingirmos o que pretendemos”, explica Dina. O café, garante-nos, tem “um sabor que permanece na boca, ligeiramente ácido e com muito aroma”.

Mas eis chegado o momento de fazer escolhas. “Nunca pensámos que isto virasse um ponto turístico”, ri-se novamente Dina. O pai não arranha uma palavra de outra língua que não seja o português. Quando os estrangeiros lhe pedem para ver a plantação, ele gesticula, explica o melhor que sabe, os turistas sorriem com benevolência, não é certo que tenham entendido alguma coisa. Para o Verão do próximo ano, já decidiu a família, vai haver folhetos em inglês a contar porque é único o café de Fajã dos Vimes. Recentemente, a mãe e a madrinha de Dina começaram a fazer uns saquinhos de estopa de linho e algodão para vender o café ainda em grão. O negócio está a crescer – mas até onde pode ir sem se estragar?

O dilema de Dina Nunes é também o dos Açores, onde as dormidas e a chegada de turistas não param de crescer. O arquipélago entrou na rota das companhias aéreas low cost, caiu no goto da imprensa internacional, tornou-se ponto de passagem indispensável. E, este ano, candidatou-se a receber a certificação de destino turístico sustentável, atribuída pelo Conselho Global de Turismo Sustentável (GSTC, na sigla em inglês). O processo deve estar terminado em 2019. Esta semana, em Lagoa, na ilha de São Miguel, autoridades locais e nacionais, especialistas estrangeiros e projectos como o da família Nunes reuniram-se na conferência “Açores 2017 – No rumo do turismo sustentável”, promovida pelo governo regional. Para discutir o que é afinal isso da sustentabilidade e o que é que o sector turístico pode ganhar com ela. Mas sobretudo: como é que se pode fazer turismo sem contribuir para a destruição do planeta.

A Nova Zelândia aqui tão perto

Segundo os dados mais recentes da Organização Mundial do Turismo, o sector continua em franco crescimento em todo o mundo e prevê-se que, em 2030, haja 1,8 mil milhões de deslocações turísticas – quase o dobro das registadas em 2012. Motor económico de muitos países, o turismo é responsável por um em cada dez empregos, por 10% do PIB mundial e por 7% das exportações.

Mas “não podemos esconder mais os impactos negativos” da massificação desta actividade, diz Luigi Cabrini, presidente do GSTC, que aponta três deles: a destruição gradual dos recursos naturais; a perda de identidade local e a criação, nas comunidades de destino, de sentimentos anti-turistas. Há uma evidente interligação entre os três problemas. Para os resolver é preciso um turismo “que leve plenamente em conta os seus impactos económicos, sociais e ambientais”, defende Cabrini. “A adaptação tem de começar agora. Quer dizer, já devia ter começado há muito tempo, mas agora tem de ser a sério”, afirmou perante a plateia.

O que o GSTC propõe, e os Açores querem cumprir, é um conjunto de critérios em várias áreas. Não se trata só (mas isso é fundamental) de controlar a qualidade da água, reduzir o volume de lixo ou proteger activamente ecossistemas vulneráveis. Para que o turismo seja mesmo sustentável, também tem de o ser económica, social e culturalmente. Por isso, a aposta tem de ser na qualidade, defende Luigi Cabrini. “Façam com que os viajantes saibam que vocês são diferentes. Vocês recebem o tipo de turistas que quiserem receber, depende da forma como publicitam o destino”, explica.

David Simmons, professor de Turismo na Universidade Lincoln, na Nova Zelândia, faz um retrato pouco romântico da situação no seu país, que tem vários paralelismos com os Açores. “Há mais gente a querer ir à Nova Zelândia do que o país tem capacidade para receber”, atira. E argumenta que esta é uma frase que o sector não pode ter medo de dizer. Por uma razão simples: na Nova Zelândia, como nos Açores, destruir os recursos naturais é destruir aquilo que os turistas querem ver. Por outro lado, defende, é preciso falar a sério sobre quem são os bons turistas. “Uma pessoa pode voar para Auckland, apanhar um helicóptero para um campo de golfe, passar dois dias a jogar, beber vinho francês, gastar imenso dinheiro, voltar a Auckland e ir-se embora. O que sobra para as vilas pelas quais sobrevoou? Só pó. Os mochileiros, só porque têm mochila às costas, não quer dizer que sejam maus turistas.”

Um dos segredos do sucesso turístico neozelandês, explica Simmons, é o facto de o país estar a pelo menos 12 horas de distância do resto do mundo, tirando a Austrália. Quem vai, quer ir. E geralmente fica por mais tempo do que ficaria em destinos mais próximos de casa. Ou seja: a viagem de avião polui muito, mas pode ser compensadora para todos. O desafio, diz, é a “gestão da presença física do turista”.

O nascer do sol em alto mar, o palheiro como abrigo

Nos últimos anos, vários projectos açorianos contribuíram para diversificar as atracções turísticas, reduzindo assim a sobrelotação de alguns espaços e levando dinheiro a zonas novas. Alguns deles foram apresentados na conferência em Lagoa. Foi o caso do Ilha a Pé. Rita Carrilho e o marido passaram vários anos a transformar antigos palheiros em abrigos para caminheiros da Grande Rota de Santa Maria, um percurso com 80 quilómetros que pode ser feito em cinco dias. Usaram só materiais naturais e locais (a pedra, a cal, madeiras, loiça típica) e contrataram uma empresa da ilha para fazer as obras.

Já Bruno Raposo, nascido e criado em Porto Formoso, São Miguel, leva turistas para o mar num barco tradicional de pesca dos Açores. “Chegam lá às cinco da manhã, é de noite e pensam ‘Eh pá, será que fizemos bem em vir ter com estes gajos?’ Depois, no meio do mar, quando o sol levanta, percebem que não interessa se pescam peixe, que já ganharam o dia só por estarem ali”, conta Bruno. O barco da Hámar (assim se chama a empresa) foi construído em Rabo de Peixe, a bordo vão pessoas da freguesia, só se pesca à linha e, no fim, os passageiros podem pegar no peixe, levá-lo a um restaurante local e pedir para o cozinharem.

“Um destino não é sustentável porque alguém decretou alguma coisa num gabinete ou porque cumpre uma lista de critérios”, diz Joana Borges Coutinho, empresária, que com Daniel Frey fez um diagnóstico à sustentabilidade da região autónoma. Identificaram inúmeros pontos que têm de ser melhorados. Por exemplo, não há ainda mecanismos de monitorização suficientemente desenvolvidos. Também as emissões de gases de efeito estufa e os transportes – num sítio onde se chega sobretudo de avião e as deslocações são de carro – são áreas a mudar. E, por fim, a inclusão da sociedade no debate ainda está muito longe do ideal. “A participação pública é fundamental. No fim do dia, quem implementa a sustentabilidade são as pessoas. A mudança de pensamentos e de comportamentos parte da educação”, sublinha Daniel Frey. Joana Coutinho corrobora: “A sustentabilidade tem de ser sentida, tem de vir de dentro para fora, da sociedade inteira, e tem de ser vivida.”

É também isso que leva David Simmons a dizer que “não se pode ter turismo sustentável numa região não sustentável” e que “o turismo é apenas um sector de exportação”, que compete com outros pelos mesmos recursos finitos. “O processo é contínuo. Nunca podemos dizer ‘Está feito, relax’. Isto não é fazer a checklist e já está”, reforça Daniel Frey.

Se tudo correr como previsto, em 2019 os Açores tornar-se-ão no primeiro arquipélago do mundo a receber a certificação de destino sustentável. Actualmente, só nove locais têm essa distinção e nenhum deles é uma região tão grande. No fim da conferência, 41 empresas e entidades públicas assinaram uma Cartilha de Sustentabilidade, em que cada uma se compromete com objectivos específicos para 2018. Por ali se fica com uma noção do trabalho hercúleo que aí vem: há organismos que se comprometem a (só agora) começar a separar o lixo para reciclagem. O gesto é pequeno, a boa intenção é grande. No fundo, aplica-se de novo às ilhas o que Dina Nunes diz do seu café: “Vamos vivendo um dia de cada vez. Temos coisas a trabalhar, coisas a melhorar. Dá trabalho, mas compensa. É preciso paixão e paciência ao mesmo tempo.”

O PÚBLICO esteve na conferência a convite do Governo Regional dos Açores

Sugerir correcção
Ler 2 comentários