A destruição de uma família no palco do São Luiz

Órfãos, de Dennis Kelly, em cena até 17 de Dezembro, coloca um triângulo familiar no centro de uma vertigem teatral que joga com a constante sugestão do medo. A encenação é de Tiago Guedes.

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Romeu Costa, Isabel Abreu e Tónan Quito entregam-se a um jogo tão imparável quanto vertiginoso ESTELLE VALENTE

Dennis Kelly gosta que o medo se instale numa sala de teatro. Ou pelo menos era isso que afirmava em 2009, numa altura em que o festival Fringe em Edimburgo se rendia a Orphans. “Talvez seja uma questão animal – temos de conhecer aquilo que nos magoa”, dizia então ao The Guardian. Essa ideia de medo, mas de um medo que alastra pela noção de família e por aquilo que cada um é capaz de fazer quando empurrado para uma situação limite, um medo que é sentimento irracional, anda à solta também nos Órfãos que Tiago Guedes leva à cena no Teatro São Luiz, em Lisboa, até 17 de Dezembro.

E anda à solta desde que, nos primeiros segundos, Liam interrompe o jantar à luz das velas da sua irmã e do cunhado, coberto de um sangue que não lhe pertence. A partir daí, Órfãos ganha um embalo de texto entregue à vertigem, prossegue numa queda livre cada vez mais acentuada, com cada novo pormenor que vai pingando sobre a história a funcionar como uma nova bomba de deflagração na relação entre as três personagens. Este triângulo foi, na verdade, fundamental para que o encenador e realizador se aventurasse pela peça de Kelly, estreada precisamente no Traverse Theatre em Edimburgo.

“Tinha encontrado um outro texto do Dennis Kelly e foi o [programador] Francisco Frazão que me aconselhou este”, relata Tiago Guedes ao PÚBLICO. “Como tinha feito o Blackbird [de David Harrower, em 2010], com dois actores, e esse primeiro texto do Kelly também era a dois, assim que me apareceu o terceiro elemento fiquei interessado em pegar no triângulo.” Ajudou depois à atracção pelo texto o frémito com que Kelly sacode em permanência as várias relações em palco, a ponto de operar transformações dificilmente reversíveis nas personagens. São vários os processos de destruição em curso durante a peça, e esse é um suplemento irrecusável.

Até porque, admitindo que a experiência lhe tem trazido um interesse cada vez maior pela sugestão em detrimento da explicitação, Tiago Guedes adopta uma via de contenção que obriga o espectador a implicar-se. As personagens não são estendidas como simplificações preguiçosas em que “Liam se lê como um psicopata, Helen como uma mulher mazinha e Danny como um tipo fraco”. “Não queria que as emoções fossem sublinhadas, para que não haja ninguém a guiar-nos emocionalmente”, explica. Em vez disso, o encenador aposta num público que, imagina-se, tenderá a identificar-se mais com Danny – alguém “com um sentido moral e ético mais de acordo com os padrões normais” –, mas cuja postura diante do espectáculo terá de ir além de conclusões maniqueístas. Para Guedes, “o cinema e o teatro muitas vezes ilustram de mais, e obrigam a sentir de determinada forma”. Nessas situações, confessa, não acha tanta graça e desinteressa-se.

Vertigem a três

No ano da estreia de Órfãos, tornou-se frequente que a situação de tortura sugerida pela peça ecoasse o escândalo dos abusos cometidos pelas tropas norte-americanas em Abu Ghraib, Iraque, e a sistemática e bárbara violação dos direitos dos prisioneiros de guerra. Mas Kelly satura Órfãos de muitas outras questões, ao permitir que na troca de palavras entre os seus três protagonistas sobrevenha, por vezes, um discurso racista e anti-imigração que torna a peça uma câmara de reflexão sobre a violência urbana e as suas motivações.

Só que ao mesmo tempo que num raio mais alargado de entendimento estas questões se levantam de forma clara, Dennis Kelly desenha também um círculo mais apertado em torno desta família. E é nesse reduto mais íntimo que se jogam as dúvidas, as traições, as fidelidades, as chantagens emocionais e o constante recolocar das peças com que o autor inglês vai, com um controlo exímio, pondo em cenas novos elementos que obrigam a um reajustamento repetido da dinâmica e do equilíbrio entre os três. Até que, sem desvendar demasiado de uma narrativa que vive desses supetões a que Danny, Helen e Liam vão resistindo, toda a ideia de salvação se vai confundindo cada vez mais com a ruína das personagens.

Se é vertigem que se sente no imparável jogo que Isabel Abreu, Tónan Quito e Romeu Costa desfiam em palco, essa sensação de desamparo e de atropelamento pelo texto do dramaturgo inglês é garantida por um ritmo trabalhado por Tiago Guedes com os actores, que primeiro lhes permitiu um contacto menos apertado com as emoções e em seguida foi decapando todo esse registo e secando o texto até entrar neste encadeamento estonteante. “Quando se começa a ter muito tempo”, argumenta, “o texto não é assim tão profundo e a peça fica lassa – tem de ser mais compacta”.

Enquanto nos prende a um texto que poderia ser o de um simples thriller, a escrita de Kelly vai colocando uma outra questão, subreptícia, deixada passar por entre as falas: deverá o medo do desconhecido sobrepor-se à defesa intransigente do que é próximo? É que, por vezes, nem a família está a salvo de si própria.

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