"Se no final não contar uma história, a arqueologia não serve para nada"

Os arqueólogos e quem tutela o património têm um problema: não divulgam os achados tanto quanto deviam. E, sem a empatia dos cidadãos, é a protecção patrimonial que se ressente.

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Alexandre Sarrazola aponta a obra na Praça D. Luís, em Lisboa, como um "exemplo paradigmático" Rui Gaudencio

Há um dito recorrente entre os que constroem, escavam, decidem, estudam e escrevem Lisboa: em praticamente todo o lado em que se mexa, alguma coisa aparecerá. A prová-lo estão inúmeras obras dos últimos anos em que os achados arqueológicos captaram tanta ou mais atenção do que o que estava a ser construído. A reabilitação urbana, seja de prédios ou de espaço público, deu um inesperado destaque à arqueologia. Mas a divulgação pública dos seus resultados continua a ser esparsa, o que não ajuda à protecção do património.

“Só preservas aquilo que conheces”, diz o arqueólogo Alexandre Sarrazola, que na semana passada levou ao Congresso da Associação dos Arqueólogos Portugueses uma comunicação com título provocatório: “Acompanhamento arqueológico em Lisboa – lei, des(ordem) e procrastinação”. Falava-se de Lisboa, mas o assunto afecta todo o país. A “desordem” vem da legislação “lacunar e insuficiente”, a “procrastinação” da forma pouco consistente como se fala dos achados que nos ajudam a espreitar para o nosso passado. “Se no final de uma intervenção urbana e da investigação científica não se contar uma história, então a arqueologia não serve para nada”, continua Sarrazola em conversa com o PÚBLICO, repetindo uma ideia que defendeu no congresso.

Ao seu lado, o também arqueólogo Miguel Lago sintetiza aqueles que considera serem os três problemas mais prementes da arqueologia nacional. Um deles é o estar “desfasada da realidade social”, pois “não é divulgada, não é comunicada” ao grande público. “Não há nenhuma instituição que divulgue”, afirma Lago, administrador da Era – Arqueologia, uma das empresas mais relevantes no sector.

Alexandre Sarrazola, que também trabalha na Era, aponta a escavação da Praça D. Luís, no coração de Lisboa, como “exemplo paradigmático”. Ali, durante a construção de um parque de estacionamento subterrâneo, encontrou-se uma embarcação romana e um fundeadouro da mesma época, descobertas “de extrema raridade”. Foi a Era que decidiu fazer um documentário, foi a Empark que decidiu montar uma exposição no local sobre o assunto. “Não percebo porque é que a tutela não divulga mais”, comenta Miguel Lago. Isso permitiria a promoção de uma “relação empática dos cidadãos com a cidade em que vivem”, diz Sarrazola, o que conduziria a maior consciência do património e a alterações legislativas que considera fundamentais.

A resolução dos “problemas e lacunas” da lei “vem sempre um bocado atrasada”, afirma o arqueólogo, que na conferência traçou uma cronologia crítica da legislação. Hoje “a realização de trabalhos arqueológicos em meio urbano” já é “encarada com toda a naturalidade”, mas de muitos percalços se fez (e faz) este percurso.

Em 1986, com a entrada na CEE e a publicação de uma directiva europeia ambiental, a arqueologia “passa a ser considerada como uma área de intervenção como as demais” nas empreitadas de obras públicas ou privadas, explica Alexandre Sarrazola. “É pela porta do ambiente que a arqueologia entra.” Como o próprio escreveu em 2006: “Imaginemos alguém que ocupa um apartamento devoluto e pede de empréstimo ao vizinho do lado o abastecimento de água e electricidade”. Assim era o acompanhamento arqueológico, “um parente pobre de extensão e mangueira ligadas à casa do lado”.

Esse acompanhamento “assume dimensão jurídica em 2014” através do Regulamento dos Trabalhos Arqueológicos, continua Sarrazola, mas há lacunas que persistem. Uma delas está no Plano Director Municipal de Lisboa (PDM), aprovado em 2012, que desobriga os promotores de projectos de procurarem arqueólogos em grande parte da cidade. No artigo 33º, que estabelece as áreas de valor arqueológico, diz-se que, nas que tenham nível três, a câmara municipal “pode sujeitar as operações urbanísticas que tenham impacto ao nível do subsolo a acompanhamento presencial da obra e à realização de acções ou trabalhos”. Pode, não deve. “Quando temos o verbo ‘poder’ em lugar do ‘dever’, as coisas tornam-se discricionárias, arbitrárias e subjectivas”, critica Sarrazola.

Uma disposição incompreensível, defendem ambos os arqueólogos, até porque toda a zona ribeirinha é de nível três, e é quase ciência certa que qualquer sítio junto ao rio tem muito para mostrar. O que, aliás, é demonstrado pelas experiências recentes: descobertas no Campo das Cebolas, no Corpo Santo, na Praça D. Luís, em Alcântara, em Belém… “Em 2012 não tínhamos ainda os achados que temos agora”, mas isso não é desculpa, porque havia já abundantes “fontes históricas e cartográficas”, diz Alexandre Sarrazola. Miguel Lago mostra-se convicto de que a próxima revisão do PDM isto será alterado, mas ainda assim afirma que “as instituições não fizeram o trabalho de casa” em 2012.

Os outros dois problemas identificados pelo administrador da Era são subscritos por Alexandre Sarrazola. Por um lado, afirma Miguel Lago, há “uma desarticulação entre as equipas de arqueologia e a investigação”. Ou seja, não é assim tão frequente que as descobertas no terreno conduzam a trabalhos académicos sobre as mesmas, e isto porque o contacto entre universidades, empresas e tutela não é o que devia ser. Por outro lado, alerta, há um problema de “gestão de espólios”, provocado pela inexistência de controlo no terreno, e que pode levar a tráfico de antiguidades.

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