As vítimas dos “voos da morte” foram finalmente vingadas

Pela primeira vez, a justiça argentina condenou responsáveis da ditadura militar pelas execuções de presos políticos atirados ao mar durante voos clandestinos.

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Jorge Acosta (esquerda) e Alfredo Astiz, que segura um livro que põe em causa o número de vítimas da ditadura EPA/Downes Florencia
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Familiares das vítimas dos "voos da morte" EPA/Carlota Ciudad

Um tribunal argentino condenou pela primeira vez vários responsáveis – alguns a prisão perpétua – pelos chamados “voos da morte”, o sistema de eliminação de oposicionistas à ditadura militar que terá causado a morte a quatro mil pessoas, atiradas ao mar de aviões.

A leitura das sentenças dos 54 acusados durou quase cinco horas, tantos eram os crimes que lhes eram imputados, escreve o La Nación. A prisão perpétua foi aplicada a 29 ex-militares – incluindo a Jorge “Tigre” Acosta e Alfredo Astiz, dois dos mais “célebres” ex-capitães da Armada e homens de mão da junta que governou a Argentina entre 1976 e 1983. Houve ainda 19 penas entre os oito e os 25 anos de prisão e seis absolvições. Os delitos pelos quais foram condenados incluem sequestro, tortura e homicídio.

As condenações não são inéditas em casos contra antigos dirigentes do regime militar argentino, mas este caso representa o reconhecimento por parte da justiça da existência dos “voos da morte”, até aqui envolvidos numa aura de mistério. O caso gira em torno da Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), que durante anos funcionou como um dos principais centros de detenção por onde passaram cinco mil presos. Ninguém estava a salvo. A vertigem da perseguição feita pela junta aos seus inimigos abria novas avenidas de repressão – aos presos políticos, sobretudo à esquerda, sucederam os presos que denunciavam as detenções dos familiares.

O ritual macabro repetia-se a cada quarta-feira na ESMA. Cada detido que ouvisse o seu número a ser chamado era levado até um pátio. Ali, era administrada uma dose de tiopental capaz de adormecer um homem adulto em poucos segundos. Eram depois despidos e levados para o avião fretado naquela noite para depois serem atirados ao mar. O julgamento concluído na quarta-feira incidiu sobre 484 casos de desaparecimentos de detidos na ESMA e 305 de sobreviventes, incluindo crianças nascidas em detenção – e que apenas os esforços das Mães da Praça de Maio permitiram reencontros tardios com as famílias biológicas.

Um dos casos envolveu o homicídio de Esther Carreaga, em 1977, amiga do agora Papa Francisco, que foi atirada de um avião depois de ter sido detida por denunciar publicamente o desaparecimento da sua filha de 16 anos grávida.

Processo longo

Foram cinco anos de uma difícil investigação em que as provas físicas eram quase inexistentes e entre os envolvidos imperou a lei do silêncio. Foram sobretudo usados os documentos da Armada, os registos de voos e os testemunhos dos sobreviventes, explicou a advogada Luz Palmas Zaldúa. “O julgamento, ao implicar os pilotos, permitiu reconstruir a operacionalidade, como actuava o grupo de trabalho da ESMA para levar por diante este método de extermínio. Como, depois de adormecer as vítimas, dizendo-lhes que iriam para um campo de recuperação, a Armada conseguia um avião e pilotos durante a noite”, disse a advogada ao El País.

A Argentina parou para ouvir as sentenças que puseram fim ao mais longo e complexo processo judicial da sua história. No exterior do tribunal de Buenos Aires foi montado um ecrã gigante para que os milhares de pessoas que se concentraram no local pudessem assistir ao julgamento. Na sala de audiências, os familiares das vítimas mostravam fotografias dos desaparecidos e lançavam gritos de “assassinos” assim que os acusados deram entrada. Como forma de desafio, Astiz, sobre quem se dizia ter uma cara de “anjo louro” com a qual escondia a sua crueldade, passou a leitura da sentença a segurar nas mãos um livro que põe em causa os números de mortos durante a ditadura.

“O julgamento também permitiu reconstruir a colaboração da Igreja, a conivência dos meios de comunicação, como o Governo utilizava os sequestrados como mão-de-obra escrava para fazer propaganda e contrariar aquilo que chamavam de campanha antiargentina no mundo”, disse Zaldúa.

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